E mais um dia ela se levanta olhos atentos ouvidos polidos umbigo teso. Mais um dia recomeça. Coa café lê jornal confere correio eletrônico lava xícaras roupas estuda notas e letras. Abre a janela. A única janela de seu pequeno conjugado no bairro laranjal da cidade carioca. Respira fundo. Passam-se alguns minutos até ela se perceber na mesma posição, o olhar longínquo, braços apoiados no parapeito, pulsos atados e mãos pendidas, e que sua respiração havia se dissolvido com os pensamentos. Tentava lembrar com precisão o sonho da noite passada. Volta a si, tensiona o corpo o suficiente para dar-lhe movimento e vai novamente até a mesa do computador onde, para sua surpresa, há uma carta recém-enviada de uma também recente amiga. Acomoda a coluna no encosto da cadeira, que já estava ali quando ali chegou, encaixa a cabeça no pescoço, novamente uma respiração consciente e se põe a ler.
A carta contém o olhar sensível de uma mulher vivida que a observa. Enquanto lê, pode ver a sua vida resumida em duas dúzias de linhas. Tudo foi dito natural e informalmente até agora, que tudo tomou forma de ás e bês na percepção de outra pessoa. Parou. Levantou olhar e pensamento e surpreendeu-se ao se ver em imagens quase tocantes, dinâmicas e centrífugas, desejosas de se materializarem numa sala de cinema mais próxima dali, no São Luiz ou no Paissandu, se viu nos cafés, e mais - viu as bolhas do leite de seu maquiato se romperem e se materializarem em frações revoltas e microscópicas de ar e ansiosas de liberdade, pôde ouvir seus murmúrios mais internos, aqueles inaudíveis a olhos nus, se viu no ponto de ônibus escuro da noite silenciosa leblonesca, sentada ao lado da Velha Senhora do Rembrandt, que lê, aparentemente inerte, mas mergulhada no mar obscuro das palavras, debatendo-se exaustivamente e em eterna suspensão. O piscar de seus olhos, e as imagens retomaram seu corpo invisível e disforme, invadindo subitamente seu aparelho respiratório, saindo dos pulmões pelas veias e traçando um caminho brusco até seu músculo mais involuntário, forçando passagem de uma só vez em suas quatro cavidades, descompassando sístoles e diástoles, acelerando compassos, redemoinhando ventos em suas cavidades cavernosas.
Firma os pés no chão, arrasta a cadeira para trás, se dirige em passos cadenciados até a cozinha onde liga a cafeteira, despeja impensadamente duas vezes a mesma quantidade de pó e ruma até o banheiro, de onde ouve o grunhido do aparelho que pede a água ignorada pelo esférico momentâneo de seu pensamento. Lembra o esquecimento e neste instante seus olhos se vêem através do espelho afixado acima do lavatório. Joga água suficiente para eliminar a espuma e, com o rosto molhado, refaz o mesmo caminho, agora de maneira decidida e em sentido contrário, abre a torneira da pia da cozinha, deixa que saia um pouco da água parada, enche uma caneca, se lembra de um amigo que só usa água mineral para fazer café, e deixa que a limpidez do líquido caia uniformemente no orifício borbulhante trêmulo e impaciente da cafeteira, sua primeira aquisição quando se mudara para ali. Recorda seu apartamento vazio, sua mochila de roupas, seu cobertor de pelúcia trazido de Minas (que desde então nunca mais fora usado), o colchonete portátil emprestado por um amigo do mais novo tudo novo trabalho, e a entrada triunfal da cafeteira embalada e protegida por bolhas e isopores sob os cuidados de uma caixa feita sob a medida do conteúdo e que avisava em letras garrafais – ‘Cuidado, frágil’. Pela primeira vez se colocou no lugar de um objeto e a partir daí a tudo o que se somou à casa foi despendido o mesmo zelo que fizera a sua primeira companhia-objeto chegar até ali, intacta. Toda soma se tornou a extensão de seu esforço desumanamente humano afim de adquiri-los.
A esta altura as águas do seu rosto e da cafeteira haviam secado. Pega a mesma caneca, ainda molhada, a que antes serviu de medida, e a preenche com o conteúdo uma vez mais forte que o cotidiano. Coloca a quantidade de sempre de açúcar, a que suporta em sua colher de prata trazida consigo na mochila de roupas e que a acompanha desde as suas papinhas e aviõezinhos, na remota quietude lafaietense. Dá um gole no café, sem perceber que está mais amargo, e senta-se novamente à frente do computador, na cadeira emprestada pela proprietária do apartamento. Sempre se lembra disso quando vai se sentar.
Sua respiração voltara ao normal. Sente todas as suas células serem alimentadas pelo ar que circula naquele pequeno cômodo, e que a acompanhará até o fim do dia. Sente também suas pernas formigando em resposta ao longo trabalho do dia anterior e se recorda de que hoje é sua folga, o dia que paga contas vai ao supermercado ao brechó das velhas ao sebo e toma seu café maquiato na livraria vizinha. Dá um segundo gole no café, agora menos quente e mais suportável a ingestões em maiores proporções. Ao perceber isto, dá o último gole, longo e certeiro. Inspira. Deita suas mãos cansadas e trêmulas no mouse, solta sem pressa o ar dispensado, abre o programa de edição de textos e, enquanto este carrega, ela pega seu cigarro de palha que está no mesmo lugar de sempre e, lentamente, retira a borracha que o mantém enrolado e fixa a palha cuidadosamente com a saliva. Acende-o.
Olha a tela. A página em branco. Pensa na carta. Fora a primeira vez que alguém, antes dela mesma, a olhara e despendera tempo com suas questões mais íntimas. Agora com toda atenção voltada para si, ela se põe a escrever e a pintar de cores ou tons diferentes cada minuto passado, os que estão ao alcance de sua memória.
A carta contém o olhar sensível de uma mulher vivida que a observa. Enquanto lê, pode ver a sua vida resumida em duas dúzias de linhas. Tudo foi dito natural e informalmente até agora, que tudo tomou forma de ás e bês na percepção de outra pessoa. Parou. Levantou olhar e pensamento e surpreendeu-se ao se ver em imagens quase tocantes, dinâmicas e centrífugas, desejosas de se materializarem numa sala de cinema mais próxima dali, no São Luiz ou no Paissandu, se viu nos cafés, e mais - viu as bolhas do leite de seu maquiato se romperem e se materializarem em frações revoltas e microscópicas de ar e ansiosas de liberdade, pôde ouvir seus murmúrios mais internos, aqueles inaudíveis a olhos nus, se viu no ponto de ônibus escuro da noite silenciosa leblonesca, sentada ao lado da Velha Senhora do Rembrandt, que lê, aparentemente inerte, mas mergulhada no mar obscuro das palavras, debatendo-se exaustivamente e em eterna suspensão. O piscar de seus olhos, e as imagens retomaram seu corpo invisível e disforme, invadindo subitamente seu aparelho respiratório, saindo dos pulmões pelas veias e traçando um caminho brusco até seu músculo mais involuntário, forçando passagem de uma só vez em suas quatro cavidades, descompassando sístoles e diástoles, acelerando compassos, redemoinhando ventos em suas cavidades cavernosas.
Firma os pés no chão, arrasta a cadeira para trás, se dirige em passos cadenciados até a cozinha onde liga a cafeteira, despeja impensadamente duas vezes a mesma quantidade de pó e ruma até o banheiro, de onde ouve o grunhido do aparelho que pede a água ignorada pelo esférico momentâneo de seu pensamento. Lembra o esquecimento e neste instante seus olhos se vêem através do espelho afixado acima do lavatório. Joga água suficiente para eliminar a espuma e, com o rosto molhado, refaz o mesmo caminho, agora de maneira decidida e em sentido contrário, abre a torneira da pia da cozinha, deixa que saia um pouco da água parada, enche uma caneca, se lembra de um amigo que só usa água mineral para fazer café, e deixa que a limpidez do líquido caia uniformemente no orifício borbulhante trêmulo e impaciente da cafeteira, sua primeira aquisição quando se mudara para ali. Recorda seu apartamento vazio, sua mochila de roupas, seu cobertor de pelúcia trazido de Minas (que desde então nunca mais fora usado), o colchonete portátil emprestado por um amigo do mais novo tudo novo trabalho, e a entrada triunfal da cafeteira embalada e protegida por bolhas e isopores sob os cuidados de uma caixa feita sob a medida do conteúdo e que avisava em letras garrafais – ‘Cuidado, frágil’. Pela primeira vez se colocou no lugar de um objeto e a partir daí a tudo o que se somou à casa foi despendido o mesmo zelo que fizera a sua primeira companhia-objeto chegar até ali, intacta. Toda soma se tornou a extensão de seu esforço desumanamente humano afim de adquiri-los.
A esta altura as águas do seu rosto e da cafeteira haviam secado. Pega a mesma caneca, ainda molhada, a que antes serviu de medida, e a preenche com o conteúdo uma vez mais forte que o cotidiano. Coloca a quantidade de sempre de açúcar, a que suporta em sua colher de prata trazida consigo na mochila de roupas e que a acompanha desde as suas papinhas e aviõezinhos, na remota quietude lafaietense. Dá um gole no café, sem perceber que está mais amargo, e senta-se novamente à frente do computador, na cadeira emprestada pela proprietária do apartamento. Sempre se lembra disso quando vai se sentar.
Sua respiração voltara ao normal. Sente todas as suas células serem alimentadas pelo ar que circula naquele pequeno cômodo, e que a acompanhará até o fim do dia. Sente também suas pernas formigando em resposta ao longo trabalho do dia anterior e se recorda de que hoje é sua folga, o dia que paga contas vai ao supermercado ao brechó das velhas ao sebo e toma seu café maquiato na livraria vizinha. Dá um segundo gole no café, agora menos quente e mais suportável a ingestões em maiores proporções. Ao perceber isto, dá o último gole, longo e certeiro. Inspira. Deita suas mãos cansadas e trêmulas no mouse, solta sem pressa o ar dispensado, abre o programa de edição de textos e, enquanto este carrega, ela pega seu cigarro de palha que está no mesmo lugar de sempre e, lentamente, retira a borracha que o mantém enrolado e fixa a palha cuidadosamente com a saliva. Acende-o.
Olha a tela. A página em branco. Pensa na carta. Fora a primeira vez que alguém, antes dela mesma, a olhara e despendera tempo com suas questões mais íntimas. Agora com toda atenção voltada para si, ela se põe a escrever e a pintar de cores ou tons diferentes cada minuto passado, os que estão ao alcance de sua memória.
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