Braço de Elefante




O ser humano pode expandir-se
até dimensões de mundos e épocas sem mover um dedo;
ele pode preencher a eternidade dentro de si mesmo
ainda que, arquejando, morra ao fazê-lo.
ERNEST BECKER



Ela despertou como sempre um esforço mínimo para abrir os olhos vencendo as secreções e olhou à sua direita como sempre olhava porque havia uma janela a mesma janela aberta por onde passava um raio de sol que àquela hora da manhã batia diretamente em seu olho esquerdo e em um pedaço do seu travesseiro. Depois este sol cairia com a tarde por aquele céu passaria a urubuzada - assim ela os chamava em pensamento - e então adormeceria novamente. A mesma cama branca o corpo imóvel o soro na veia do mesmo braço o braço direito de sempre.

Ela despertou como sempre abriu os olhos vencendo as secreções e olhou com esforço em sua volta procurando alguém e não entendeu por que porque nunca vira ninguém naquele quarto branco e frio então se satisfez como sempre em olhar a janela o mesmo pedaço de céu da janela aberta por onde passava o raio de sol que a essa hora batia em seu olho. Depois este sol caiu com a tarde veio a urubuzada anunciando a noite próxima e então ela adormeceu.

Ela despertou e tão logo abriu os olhos o sol batia em seu olho imaginou um quadro pintado e emoldurado: ela na cama ao centro os urubus à sua direita no parapeito da janela e uma pessoa vestida de branco ao seu lado esquerdo supostamente uma enfermeira esta enfermeira olhava para ela segurando um pano vermelho. E passou o dia pensando se esta imagem seria alguma premonição indicando a chegada de alguém ou se teria sido recuperada de sua memória. Ficou pensando essas e outras coisas relacionadas ao quadro. Caiu a tarde e ela não viu a urubuzada passar nem o céu que se fechava mais cedo. Adormeceu.

A chuva veio forte e ela acordou com trovões viu tudo escuro sentiu um medo terrível daquilo tudo pensou que estivesse morta e foi depois que um relâmpago iluminou o quarto que ela percebeu que não que vivia e pensou que a chuva viera forte assim pra arrastá-la dali. E se lembrou do quadro da tarde pensou não em deus esse deus do abandono e do sofrimento mas na enfermeira do quadro que poderia vir agora e fechar a janela. Essa janela aberta tão grande! a chuva imensa essa chuva que queria levá-la dali e um medo terrível de criança ela mesma fecharia a janela mas suas pernas não se moviam há anos que suas pernas não se moviam ela se lembrou e quis chorar chorar mas o medo e os trovões e os relâmpagos e a água inundando seu quarto o vento forte trazia a chuva até a sua cama em seu rosto e ela fechava os olhos e sentia suas secreções se dissolverem e escorrerem até o seu ombro e o colchão agora inundado o vento frio ela viu brilhar o chão quando veio outro clarão e tudo novamente escuro e a urubuzada em algum lugar se deliciando com aquela torrente e rindo da sua desgraça ela ouviu um murmúrio fundo e se sentiu como há muito não se sentia ela mesma sozinha abandonada profundamente triste e humana.

Depois da chuva o céu lavado fez amanhecer vermelho. Tudo estava como deixara a noite anterior. O sol que batia em seu olho esquerdo era o mesmo sol que fazia a água do chão reluzir no teto e ela da cama olhando aquilo pôde projetar todos os incômodos que a vida lhe causara. Vieram as lembranças. O medo da cobra nas corridas pelo capinzal o medo do homem do saco o medo dos cachorros o medo do monstro do rio o medo da mãe o medo de seus seios não crescerem o medo o medo de ser reprovada na escola o medo da curva da estrada o medo do pai o medo de não se casar o medo o medo do falecido marido o medo de ser feliz o medo medo da morte. O medo. E então sentiu uma revolta muito grande por ter se omitido tanto e se sentiu um verme por não ter conseguido terminar de pintar o seu quadro o quadro da sua vida a vida inteira em um único quadro que arreganhava toda a miséria humana aquele quadro inacabado aquele quadro aquela gente. E sentiu raiva de si mesma e de sua incapacidade. Sentiu ódio da mãe falecida e da sua piedade e da vaidade do marido que ela abafara com um travesseiro na noite em que completariam vinte e cinco anos de casados ai o nojo nojo do brasileiro indiferente essa gente fedida que acorda trabalha e dorme acorda trabalha dorme e fode de vez em quando que é pra foder ainda mais com esse país de merda passando a merda de geração pra geração infinitamente enchendo de dinheiro o rabo do poder ahh o podeeer que cospe em cima da ignorância e acha graça mas isso tudo já foi dito e redito. Sentiu-se aliviada por não ter deixado descendentes.

Baixou os olhos junto com a tarde que caía olhou para o seu braço direito e levantou-o num ato de extrema lucidez como que pedindo uma bênção respirou fundo e desenhou no ar o sinal da cruz que ao ser riscada com tamanha violência fez com que ela se libertasse da agulha do soro que rasgou-lhe a veia. Deitou novamente o braço na cama que era toda branca a palma da mão pra cima pendeu a cabeça entregando-se e ficou olhando o fluxo aquele fluxo que se escondeu por todos os seus anos que somente agora resolveu se manifestar e não conseguiu pensar em mais nada. Somente respirava aliviada enquanto seus olhos se fechavam em frações imperceptíveis até que captaram a última imagem um grande vermelho desfocado.

Ao terceiro dia, veio a urubuzada.

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