(...) nº 1

"Metrópolis", de Fritz Lang - 1927- Alemanha

Digito a última palavra do relatório de hoje que salvo na área de trabalho como "Relatório 177" e envio para a Corporação, com cópia para todos os departamentos. Todo fim de expediente a mesma coisa, amanhã será o 178 e assim por diante, até chegar ao duocentésimo quinquagésimo quarto relatório, do último dia útil deste ano de maior número de dias úteis da última década. Ano passado foram duzentos e cinquenta e consequentemente duzentos e cinquenta relatórios. Ano retrasado foram duzentos e quarenta e nove. Este ano tem duzentos e cinquenta e quatro porque tem feriado pra todo lado caindo nos sábados, o que por um lado é bom porque sábado é praia, e quando é feriado a praia fica cheia de gente bonita, gente de fora, e é só gente bonita pra lá e pra cá, então eu me sento no meu quiosque sagrado com minha latinha que saco magistralmente do isopor portátil que levo de casa com gelo de forma e meio litro de álcool que é pra conservar e então me sento ali e me ponho a ver as belezuras porque feiura eu nem vejo e nem sei que existe. Então rezo rezo agradecendo a Deus.


Amanhã é domingo!

Depois segunda...

Dia de semana ando rápido. Saio do trabalho atravesso a praça redonda em linha reta passando pelo ponto central. Traço diâmetros, sempre com perfeição, encurto caminhos. Tenho pressa, dia de semana sempre tenho pressa, o sol sempre cai e eu sempre quero pegar a luz do fim do dia em casa.
Chego, jogo a pasta em cima da cama, abro a cortina a janela libero os punhos tiro sapato meia, úmida. Destampo a lente, me posiciono.


Vejo que há coisas incomuns. Muito incomuns, pra falar a verdade. Cama arrumada, cabelos penteados. Zoom (...) Engraçado, agora penso, é como se ela já estivesse pronta para o ocorrido logo depois. Pensar que realmente as pessoas podem pressentir o futuro ou alguma tragédia pessoal, algo que lhes mude o destino, contrariando a cegueira de Édipo, é algo que me assusta. Ah, Tirésias, Tirésias! Tudo se mostra agora extremamente coerente.
Ela continuou sentada na cama arrumada, cabelos penteados, olhando pela janela. Via-se o céu e ela parada, só olhando. O sol nasceu e antes a noite as cigarras as nuvens vermelhas indicando a programação do dia seguinte. Do vermelho fez-se o roxo e púrpura e então a cor da manhã. E os pássaros.


Nada entendo de nada, são mil e uma voltas, vou viver mais de cem, é verdade, é genético!, mas não dou conta, não dou conta!, continuarei sem entender.


Fecho minhas cortinas.


Três horas de sono.


O Dia seguinte


Dia de semana ando rápido. Saio do trabalho atravesso a praça redonda em linha reta passando pelo ponto central. Traço diâmetros, sempre com perfeição, encurto caminhos. Tenho pressa, dia de semana sempre tenho pressa, o sol sempre cai e eu sempre quero pegar a luz do fim do dia em casa.


Chego, jogo a pasta em cima da cama, abro a cortina a janela libero os punhos tiro sapato meia, úmida. Destampo a lente, me posiciono.


Ela na cama desarrumada, cabelos desgrenhados. Do roxo fez-se o vermelho e então o escuro da noite. E os urubus.


Quando anoitece


Estou de pé, à sua frente, você deitado assim como sempre. Tiro calmamente o sutiã, olho seus olhos, você deitado e um dos braços segurando a cabeça. Inclina-se pra frente, assim me vê melhor e me vendo melhor se sente capaz de ordenar suas diretrizes deitando o pensamento no indizível. É verdade, indizível. Então deixo cair descuidada e teatralmente uma das alças do sutiã. Depois a outra. Essa foi previsível mas poderia não ser. Deixo meus ombros livres como os das musas renascentistas. O meu ombro é branco como o delas, mas com uma singela diferença perceptível somente aqui no seu quarto.

Estou de pé, os pés pressionam os dois tacos bambos do chão, penso em tatear algo mais seguro, mas não, daqui te vejo sem maior esforço. Devo estar leve e serena. Ou pelo menos me parecer. Você deitado, os pés se cruzam balançando os dedos, coçam-se uns aos outros. Reflexo. (...) Confortável, porque é assim que tem que ser; e eu me equilibro sabendo que virá um rangido com meu próximo movimento. Preocupo-me em imprimir um gesto exato, preciso, ritmado. Seus olhos atentos um pouco esticados para caber o sorriso de trás. Claro, fiz tudo ao seu modo. Terminado o jantar lavei a louça beijei suas mãos em concha conduzindo-as até aqui com uma mão, a outra apagando as luzes. Durante o percurso me perguntou se eu não me importo com essa calmaria de tudo, e disse carinhosamente que a comida estava deliciosa. No fim do caminho você sempre diz
o Desejo não é fato consumado.
E eu, concordando:
o Desejo é latência pura, circular,
a mais primitiva das formas de vida.
Essas nossas últimas palavras, até que novamente amanheça.

Fragmento II



Hoje o Jorjão ficou de passar aqui às 9 da manhã. É domingo e ontem foi aniversário da minha amiga Assunção, que se eu não fosse a esse aniversário ela ia me matar, ou então falar na minha cabeça durante 1 ano porque eu não fui, como foi no ano passado. Então eu fui. A Assunção me pediu pra chamar meu amigo Dino, amigo e vizinho, pra ir também no aniversário dela. É que o Dino, na hora que a Assunção me ligou pra falar do aniversário, tinha acabado de sair daqui de casa me ajudando a trocar os móveis de lugar. É que eu tava no ônibus vindo pra casa e pensando no tanto que eu queria mudar os móveis de lugar. Subi no elevador e parei dois andares acima do meu pra bater na porta do Dino, e essa porta tem um desenho dele mesmo, um bonequinho parecido com ele e escrito embaixo "Dino", fazendo o chão pro bonequinho não voar, essas coisas que só gente de psicologia nota (eu não sou de psicologia). E pensei no tanto que o Dino é esperto porque não dá pra confundir a casa dele. Nosso prédio tem todas as portas iguais, todos os corredores iguais, então é fácil bater na porta dos outros por engano se não olhar direito o número em cima da porta. Então vi o desenho, vi que era mesmo a porta do Dino, testei a campainha (não funciona), bati três vezes com o dedo médio, que é o que ressoa mais. Esperei em frente ao olho mágico pro Dino ver que era eu, porque nesse nosso prédio tem tanta gente, dizem que mais de 2100 pessoas, e não é todo mundo que abre a porta assim, sem ver antes pelo olho mágico. Porque o nosso prédio não tem interfone, então pra falar com alguém, só mesmo batendo na porta e ficando em frente ao olho mágico. Então o Dino deve ter visto que era eu porque nem demorou a abrir. Abriu, deu um sorriso de Dino, eu retribuí um sorriso meio assim sei lá de quê, e disse "Dino, você tá muito ocupado?", "Tô almoçandinho...", "É que... será?, pode?, é muito pesado... depois do almoço... Te espero então, sem pressa. Obrigada, Dinoooo!". Desci correndo os dois lances de escada e, chegando em casa, passei um café fresco e bem forte pro Dino que não quis café nenhum, quis foi a cachaça pau pereira que é maravilhosa e que foi o meu benzinho que trouxe aqui pra casa. Meu benzinho é aquele amorzinho com quem eu tava falando no Fragmento anterior, o dos seiscentos que vai virar zero, e que não vejo a hora dele voltar.
Ontem, no início, eu tava falando com ele. Por isso que tem aquelas coisas de ninfeta e de homem descendo as escadas. Aquelas outras de ovo herdado e de língua divina fui eu também que falei, mas é como se não fosse. E depois eu esqueci tanto e gostei tanto da novidade que eu tava falando não sei pra quem, que esqueci dele pensando que tinha gente me ouvindo contar aquilo tudo, e que eu não sabia quem que era. Engraçado porque parecia mesmo que a casa tava cheinha de gente. Mas não fique chateado, benzinho, que eu vou deitar daqui a pouco na rede e ficar "pensandinha" em você olhando as estrelinhas e fazendo a rede tremer. Eu não esqueço você... Mas o que eu tava falando é que o Dino tomou o pau pereira que eu tinha e o Dino suava coitado arrastando esses móveis pesados porque quem fazia força era ele. Até que ficou tudo do jeitinho que eu queria. A escrivaninha de frente pra janela que dá pra uma floresta, que é pro Cláudio quando se sentar nela ter mais motivo pra continuar sentado sem ficar olhando pra mim com aquele olho de quem tá vendo tudo mas na verdade não tá vendo é nada. Acho que foi quando ele saiu dizendo "de repente me senti tão sozinho" que eu tive a ideia dessa escrivaninha ali, pra preencher a vida dele aqui em casa. Porque é lindo tudo que eu vejo pela minha janela, e acho que deve ser pra ele também, o céu quase entra dentro de casa de tão grande que é a janela, então coloquei a escrivaninha meio enviesada, de quina, mais de frente que de lado. Meio de quina, só pra dar um charme. Vi o Dino antes de ir embora e tomar o último gole do pau pereira experimentando um óculos amarelo que eu tinha. Eu disse "Leva", ele "Fica bem no palco", o Dino é músico, toca percussão e manda um eletrônico. É cheio de mulher querendo beijar ele, e sem óculos. Imagina com esse óculos, ficou realmente muito lindo. "Leva, é seu.". Ele agradeceu e pediu emprestado o filme "Querelle", eu disse "Leva!", ele "Eu te devolvo daqui a pouco. Se eu não vier até tal hora...", eu "Não esquenta, Dino, quando puder você traz de volta". E aí ele foi, fez reverência na hora de sair, o Dino é muito elegante, mesmo descalço ele é elegante. Ele tirou o chinelo antes de entrar aqui em casa, só quando ele foi embora que eu percebi que ele tava descalço porque ele inclinou a coluna assim, pra encaixar o chinelo no meio do dedão e o outro de segurar marido, aí então percebi que o Dino é mais elegante do que eu pensava porque ele tava descalço e eu não percebi. A gente despoja quando fica descalço, mas o Dino não despoja acho que nunca. Então fechei a porta depois da reverência do Dino, agradecendo, mandando beijos como se estivesse num porto. Tudo em slow. "Agora eu vou sentar na escrivaninha, pegar um café com canela, um choro de vodka, e.", pensei. Já era noitinha. E eu gosto de sentar em frente à janela quando é noitinha. Foi eu fechar a porta pro telefone tocar. Assunção. "Meu amorzinho, acabei de fazer aniversário..." Já vi que vinha coisa... Senti que eu ia ter que sair de casa naquela noite, ontem... "Mas não é amanhã, Assunção? Dia 21? Não é dia 21 o seu aniversário?" "Esse ano é hoje," o sol na casa tal a lua que não sei o quê e não sei o quê lá mais, eu não entendo essas coisas de astros que a Assunção conhece e adora, só sei que ela mandou "Esse ano meu aniversário é hoje, e começou agora, às 18h23". "Hum..." - Paralisei. "Você sabe que você é a única pessoa que eu quero ao meu lado hoje... , ...". "Sei... (?) e você tá pensando em fazer o quê?" - perguntei, porque a Assunção queria ter me carregado pra Búzios esse fim de semana, coisa de querer passar o aniversário em uma cidade onde ninguém a conhecesse e eticétera e tals, porque a Assunção é conhecida aqui, ela faz cinema, cineasta, cineasta de vanguarda, a Assunção é fragmentada, todo mundo conhece um pouco da Assunção. Mas eu tirei a ideia de Búzios da cabeça dela logo que pensei no Cláudio e no Jorjão que iam ficar chateadíssimos comigo se eu viajasse esse fim de semana, e depois eu conto por que eles iam ficar chateados. Bom, pelo menos Búzios não é... – pensei. E esperei a resposta, enquanto sentava na escrivaninha. "Abriu uma pizzaria aqui na minha rua, um lugar lindo, super charmoso, queria que você viesse pra cá e me ajudasse a organizar... Eu queria... sabe o que que eu queria? Eu queria... um encontro só com meus grandes amigos, parceiros, só gente querida. Quero só gente querida hoje perto de mim, e pensei em comemorar hoje porque tá todo mundo acostumado com essa coisa de meia noite, passar meia noite e tals, e eu não vou ficar explicando todo o meu mapa astrológico desse ano pra todas as pessoas que eu ligar. Então fica como se fosse na virada mesmo da meia noite o meu aniversário." – Então não sou só eu que ela quer, pensei... "Pensei nesse lugar porque é baratinho, é pizzaria, todo mundo pode pagar, e eu quero um programa mais leve, nada de noitada boate doideira...", "Eu acho ótima, Assunção, essa sua sugestão...", "Eu preciso, meu bebê, preciso muito de você pra me ajudar a ligar pras pessoas, ir comigo na pizzaria conversar antes com o gerente, ver se ele deixa eu levar uns prossecos, mais uma garrafa de uísque e uma de vodka, e tenho que ver também se lá pode fumar, porque se não puder fumar eu prefiro passar a meia noite no banquinho da praça Santos Dumont. Você faz isso pra mim, de presente?", "Assunção, eu tô sem internet, não tenho como fazer isso...", "Mas não é pela internet, menina, você vem aqui em casa e liga do meu telefone. Na vinda você passa na pizzaria e vê essas coisas pra mim... Eu dei uma fisgada na coluna limpando a casa pra ficar bem limpinha no dia do meu aniversário porque depois que a pizzaria fechar a gente vem pra cá e fica escutando o último cd do Caetano que é maravilhoso. Pedi à minha mãe de presente uma faxineira hoje, mas a puta não veio. A casa tava daquele jeito que você conhece. Acho que eu mereço agora um banho e pensar na noite." "Assunção, eu não posso ir pra aí mais cedo... Adoraria te ajudar, mas não posso..." "O quê que você tá fazendo, sua vaca?" "Assunção, eu tô fazendo um monte de coisas, um monte! de coisas..." "Monte, o quê?" "Monte, desde lavando roupa até..." "Não, dando o cu é que não" – ela ria e ria. "Não, Assunção, infelizmente não estou dando o cu (no momento). Mas faz o seguinte: toma seu banho, pega o elevador, e vai lá ver isso com o gerente. Eu me encarrego de ligar pro Jesus e você liga pro resto. Se bem que nem sei como é que eu vou achar ele porque a porra não tem celular, mas eu tento o fixo, ligo pro 102 e pronto, resolvido. Faz isso que mais tarde a gente se encontra." E desligamos, peguei o telefone da escrivaninha, o fixo, e liguei pro 102. Bastou 1 minuto e meio conversando com a puta da voz eletrônica dizendo "Entendi" "Não entendi. Poderia repetir?" "Não entendi, poderia repetir?" "Não entendi. Poderia repetir?" "Sua puta, vai tomar no meio do seu cu", e desliguei. Tento não perder os nervos. Hoje ficaremos sem o Jesus, se o Jesus não ligar. Pensei isso olhando pra fora, morrendo de vontade de ficar em casa. E descobri que eu tinha colocado a escrivaninha ali não só por causa do Cláudio, mas porque eu também ia adorar ficar sentadinha ali, as perninhas pra cima, olhando a paisagem. Porque eu vou te falar uma coisa, se tem uma coisa que me comove é a paisagem. Depois da música, porque a música é a coisa que mais mais me comove. Mais mais mais. E nem tem jeito de fugir porque em tudo que eu faço tem uma música que acompanha. Por exemplo, tenho uma que se chama "Descendo a escadaria do 336", que é quando o elevador tá quebrado e eu tenho que descer de escada que é dó dó dó dó ré dó dó dó dó dó dó dó ré dó dó dó fá dó ré mi ré sol dó mi , tudo dois por quatro, eternamente no ritornelo, até chegar no térreo. Até chegar no fá são os degraus, daí pra frente e antes de voltar ao começo são os 7 passos até chegar no outro lance de degraus. A música é realmente impressionante. Foi Ray Charles que disse uma vez que "Pela Música cheguei a Deus. E quando cheguei a Deus, vi que havia chegado ao Diabo. Não quero desfazer este pacto por toda a eternidade". Esse disse tudo. Agora vou tomar banho pra sair. Meu benzinho, estou te esperando de volta. Um beijo, da sua, L.R.

Fragmento

Tela de Balthus
Tome a hóstia sagrada que me sai de forma despudorada do meu terrível corpo tomado pelo pecado e pelo prazer da carne. Purifica-me com tua saliva sagrada me traga de volta à luz que um dia vislumbrei quando criança do alto de uma montanha.

E havia um homem grande do meu lado, grande não, enorme, tinha que deitar pra ver ele inteira. E via de perto porque ele se deitava em cima de mim sem fazer peso e me falava no ouvido a história de cada estrela e eu adorava ouvir essas histórias, e cada uma que eu ouvia e via ele me mostrava que tinha alguma correspondente no meu corpo monocromático. Monocromático, sim, é como você gosta de dizer. Ele dizia assim também. E uma amiga gosta de dizer é que as estrelas não dormem.

Quem não dorme sou eu quando não tenho seu corpo purificado pela morte sobre mim, assim como não posso ter tranquilidade se penso que está a seiscentos quilômetros desse jazigo da salvação.

Aqui jaz uma ninfeta de proveta. E a b...

seria minha obra máxima e se submeteria ao poder absoluto do seu correspondente.

Guardo-a

como quem guarda

o ovo herdado e jamais esquecido, ou

o homem descendo as escadas (original!). Guardo pra quando os seiscentos virarem dois e nessa contagem armo minha rede e conto as estrelas e lembro do homem da montanha mas aquilo passou e o que vale mesmo é que hoje

posso contá-las e reconhecê-las em meu corpo estendido e aberto às tuas carícias e à tua língua divina.

Ouvi dizer que o Herbert adora o pensamento negativo, mas se eu pensar ruim eu vou ficar muito triste e aí é que eu não vejo estrelas mesmo. A cama é uma delícia, macia, e só dá vontade de ficar ali e olhando pro céu. Ela treme quando eu fico assim, deitada de barriga pra cima e olhando pro céu. E aí tem aquele Einstein que você me mostrou na praia e que é só eu me lembrar que aí a cama treme mais ainda. Engraçado né carinha como que o corpo da gente é engraçado. E por falar em engraçado, então, aquele rapaz super super do Paraíso, fiquei lembrando as histórias dos cus que ele queria comer. É que quando subo na rede só me vêm essas histórias na cabeça. Por isso que é engraçado mesmo. Tudo fica uma putaria só, e tem aquela do pai do rapaz que passa e toma um susto danado quando olha na abertura da porta meio aberta meio fechada do quarto do filho. Também, quem mandou ele olhar, saiu correndo pro quarto da cigana que jogou pra lá as cartas que tinha nas mãos, e aí começou a putaria geral.

Agora eu vou ter que ir que sempre que eu quero escrever alguma coisa pra você alguém chama no telefone pra fazer alguma coisa. Nem aqueles seus escritos eu pude ler ainda, aqueles que você deixou pra eu me lembrar de você enquanto você estivesse nos seiscentos e eu no ponto zero, de retorno. Porque você vai retornar né. Senão aqui não vai ser mais o zero,

mas a chegada e a partida

porque sem você eu não fico mais aqui. Levo minhas coisinhas todas embaladas na rede, aquela calcinha que você gosta e a cueca que você deixou pra eu ficar namorando enquanto você estivesse nos seiscentos. Mas você sabe que além da sua cueca eu fico também com o Marcel, o Herbert, o Albert 1, o Albert 2, o Ernest, o Edgar, e que eles ficam aqui comigo, você sabe, mas deles você não tem ciúmes. Só quando aquele menino de fora veio aqui que era pra gente ver um filme daquele cara engraçado que nasceu em Iquique, uma cidadezinha do Chile menor que a minha, onde eu nasci. Dele você também não tem ciúmes, do chileno. Só do menino que veio ver. E talvez do filme, porque aqueles dois que vão pro deserto juntos e ficam andando o filme inteiro sempre pra frente pra encontrar uma cidade que ninguém sabe onde é nem nunca viu mas todo mundo já ouviu falar, que é aquela cidade onde todo mundo é feliz. Mas o que você não sabe é que no filme eles não encontram a cidade, e

deve ser porque ela não exista.

Quando você voltar vou te dizer isso, que a cidade não aparece no filme, deve ser porque eles não sabiam que tipo de gente poderia nessa cidade, e aí você vai ficar um pouco mais tranquilo. Mas o menino fala as coisas todas do Wilhelm (é William, que se diz aqui?), das óperas que ele gostava, dos cinco prefácios que nunca viraram livros, tem gente que tem tudo decorado, acho que ele tem também. Eu decoro são as frasesinhas que eu canto pra você olhando as estrelas um dó sol ré mi ré dó lá dó sol lá lá sol mi ré dó si ré dó, isso quando eu tô calma na rede coçando minhas ressequidas canelas, como disse aquele menino da história da Hilda, enfim, quando tudo tá calmo e sem vento nenhum e que eu canto isso com suavidade. Porque tá fazendo frio aqui e quando ta frio eu não fico nada calma, os meus peitinhos se arrepiam quando venta forte, e quando cai uma chuvona daquelas que caiu ontem então, pior ainda; e você não viu por causa dos seiscentos, mas acontece que quando caiu essa chuvona tudo endureceu tanto e meu corpo foi se encolhendo na rede, e a rede ficou pequenininha pra me cobrir toda encolhida, e eu sentia muito frio, e então saíram umas coisas modais que o vento soprava com a água que caía direto no meu olho, fazendo arder, tava muito ácida aquela chuva, e aquele frio todo o ardido, só pude fazer umas coisas estranhas, modais, que se o Moacir fosse vivo ele deixaria eu chamar de Coisa nº 17 e eu ia pedir pra ele o 17 porque 17 é o meu número de sorte. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá, foi isso que saiu. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá, com a maior variação rítmica que você possa imaginar. Dá-lhe fusa e semicolcheia. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá. Mas chega de cantar porque o telefone tocou de novo. Quando é que eu vou ter sossego pra te escrever direitinho e com calma hein? E não é só por isso não, é que depois que todo mundo tem telefone ninguém faz mais nada além de telefonar pras pessoas. Só que eu não quero falar, eu quero estudar, o Ingmar vai ficar chateado de novo comigo porque eu vou sair, e dele você também não tem ciúmes, ele me pediu pra ficar em casa que ele me ajudaria a consertar aquele meu relógio tic tac que eu ganhei de presente por causa dele. Porque o último filme que eu fiz começa com esse tic tac, e ele sabe que foi em homenagem a ele. Então quis muito me ajudar nessa. Depois, quando eu voltar, vou continuar aquela história do frentista que te falei e que não sei mais se é frentista, talvez algum cara de uma conspiração que eu vou saber qual é, e que é só eu ficar quieta sem telefone que eu descubro. Mas aí só mais tarde quando todo mundo estiver dormindo, a única hora que eu consigo pensar no frentista. Ops, no cara da conspiração que virou frentista. Por um dia, dois ou 17. Ou ele é algum Segein que resolveu deixar de lado o campo fechado do audiovisual e de procurar o tal rio que ele diz que passava embaixo do asfalto daquela avenida, aquela maior de todas, e que tem até documentos que comprovam mas que ninguém nunca viu, talvez ele nem os tenha, então pode ser que ele tenha desistido dessa do rio e do audiovisual pra investir na concentração de monóxido de carbono. Razão e Revolução!, ele gritaria às três da tarde embaixo do relógio da Central. Mas também não sei se é uma boa, o Segein tem essa mania de querer ficar passando Cera Luminosa no corpo inteiro, até no ouvido que já tem cera natural ele passa a Luminosa, dizendo que é pra não gripar. Aí não encaixa muito no cara que forja todo um esquema de combustíveis e faz o trânsito da cidade inteira parar. Tem também aquela história das estatísticas que surgiu no Pierrot quando eu conversava com minha amiga das montanhas. Essa eu não sei nem como começar e nem sei se vai ser de estatística, a gente andou conversando depois. O que eu sei é que acordei e enquanto passava o café, o Cláudio que você conhece, ele dormiu aqui em casa porque disse que queria pensar numas coisas, umas idéias, e que era mais fácil pensar aqui em casa que na casa dele, não sei por quê, não conheço a casa dele. Acontece que enquanto eu passava o café o Cláudio não falava nada, ficou calado o tempo todo sentado à minha frente me olhando passar o café, olhando assim, com o olho parado, então não olhando na verdade, mas aí tocou a campainha, e quem era?, o Jorge. Chegou dizendo um monte sobre o Al Gore e que o mosquito da malária é o maior defensor da floresta amazônica e coisa e tal. Só sei que nessa hora o Cláudio levantou o olho e deu um sorriso pra mim como se dissesse é agora e daí por diante eu não entendi mais nada, eles foram pro escritório e começaram a falar muito baixo, como se planejando alguma coisa. Mas não eles gostam mesmo é de discutir, botar as idéias e a imaginação pra funcionar. O Cláudio queria mesmo era um motivo pra dizer alguma coisa, ele queria falar mas não sabia escolher o quê, porque a cabeça dele é sempre a mil por hora, e então quando tá a mil e duzentos ele paralisa que nem paralisou nessa hora que eu te falei. O Jorge é uma pessoa engraçada, eu adoro o Jorge. Adoro ouvir as coisas que ele fala, me parece uma pessoa muito sábia, e as pessoas sábias dão vontade de você ficar perto o tempo inteiro, e é pena que eu encontro pouco com ele. Depois da conversa com o Cláudio ele foi em embora, e o Cláudio também um pouco depois. Ainda tomou mais um café com bastante açúcar e canela, pegou a pasta dele, tocou a maçaneta, virou-se pra trás, pra mim, e disse “de repente me senti tão sozinho”, e foi. Sozinho. O Jorge já é um pouco diferente, quando ele saiu, disse “no fundo de todas as almas massacradas, o elo de união”. E foi também, mas não tinha nada nas mãos.

O que eu não te contei é que ontem eu abri a mala que levei pra casa do Zé no ano passado, a última vez que eu fui lá, e me deu uma secura no peito antes de abrir essa mala porque você sabe que ele morreu e eu não pude me despedir dele. Nem dizer o que eu sempre dizia, mas queria ter dito antes dele morrer, que é “Zé, eu te amo. Vou, vou sim, eu vou pra aí, faço muita comida gostosa, a gente vai ao supermercado e dança com o carrinho. A gente dança, canta, enquanto procura aquela mostarda que você gosta. E aí a gente chega em casa abre o vinho, eu cozinho enquanto você me conta histórias. Quero muito, ta apertado mas dá, eu tô indo pra aí. Verdade! Juro!”. Queria ter dito isso, fiquei de ligar, as coisas passavam, eu louca pra ter notícia, alguma coisa me dizia. Mas não liguei, não pensei que ele fosse agora, sei lá o que pensei ou não pensei. E nessa mala tava todo o figurino que eu usei pra fazer ele, porque eu fiz ele no teatro, eu me vestia dele e falava como ele e falava as coisas que ele falava, tudo como ele tinha escrito e me dado um dia num bar de Belo Horizonte, o Lucas, e que ele escreveu uma dedicatória “para minha amiga companheira de sonhos...”. Aí eu montei em seguida no teatro. Mas nesse dia do bar, ele tinha acabado de ver a sobrinha dele que eu mostrei pra seiscentas pessoas (me lembrei de você com os seus seiscentos que vão virar zero daqui a alguns dias) e mandei logo uma frase bem cabulosa pra ele, que a sobrinha falava (a sobrinha não falava, entenda, ela só falava através de mim), na frente de todo mundo, a frase perguntava se é mais gostoso ser lambido que lamber, e esperei ele responder. E ele respondeu que era mais gostoso ser lambido que lamber. Depois disso é que nós fomos pro bar e ficamos lambendo só gelo mesmo a noite inteira e falando de arte e de umas promessas com ele e a mulher dele, que é linda. Quando eu dormia na casa dele era assim, a gente acordava, ia pra mesa tomar o café e contar os sonhos. Depois cada um pegava um livro e lia o que tinha achado de mais interessante que o outro soubesse daquele livro. Depois cada um ia pra uma rede e ficava lendo pra terminar de acordar, com café e canela na caneca esquentando a barriga, e depois ia cada um pra um quarto pra escrever e só saía de noite pra jantar. Eu que ia sempre cozinhar porque gosto, e todos gostavam da minha comida (ou de não ter que fazer comida). Silenciosa janta, que cada um tava com suas histórias na cabeça completando o silêncio. E sabe que eu tinha medo daqueles cachorros todos, mais de oitenta na casa, e a primeira vez que eu fui lá ele me protegeu dos cachorros e nenhum deles chegou perto, porque podia ter matilha e tudo, mas era ele que mandava na matilha, tava acima do chefe. Então ninguém mexeu comigo. Até o Raí, que era o aspirante ao chefe e o mais agressivo e que mordia todo mundo que chegava de fora, gostou de mim. Aí que eu comecei a gostar de cachorro, mas de matilha. Cachorro que vive solto, não de apartamento de madame. Depois te conto a história da madame que bateu aqui em casa ontem à tarde, pouco depois da Rita sair, e ela bateu achando que eu lia mão ou jogava carta ou coisa assim, depois te conto o que aconteceu quando soube que eu faço o que eu faço.

MOÇA (em off)

Tela "A jornada do Romance - Cena 4" - de Eric Fischl

Qual o tamanho da boca que não cala
Entre sussurros e abafos nas noites
Aparente-calmas.
Do silêncio que mata
Entre o nada das fronhas 
bordadas na sala.
Qual o tamanho
Da palavra pensante
Do ruído no jantar
Qual
O tamanho da dor voltante
Da morte obscura
Do amor perdante
Da saudade dura 
Qual o tamanho, a altura
Do décimo primeiro andar até à rua?