XVI

Tela de Piotr Naliwajko


Maria perdeu sua filha de dezesseis anos num desses acontecimentos urbanos que ninguém vê, e no final das contas descobre-se que ninguém tem culpa de nada, exceto quem morreu. Porque o morto todo mundo vê e ele tem culpa sim, aquilo esparramado atrapalhando o trânsito!, olha só, minha senhora, essa pilha de denúncias de gente que perdeu vôo, olha só, gente importante! e que trata de assuntos importantes! sobre o nosso país, não podem se atrasar porque os negócios não atrasam, minha senhora, os negócios não-a-tra-sam!, e nós devemos andar no compasso dos negócios. A senhora entende, não é? Leve-a pra tomar um pouco d’água, a senhora deve se acalmar, eu também sou pai de família e posso entender o seu sofrimento. Mas o que aconteceu está acontecido, não há nenhuma evidência concreta que prove o autor do acontecido, agora o meu dever é não deixar que aconteça outra vez. E pra que isso não aconteça outra vez, é preciso trabalhar. Eu preciso trabalhar, minha senhora. Com licença. Foi um prazer. Ah!, o tempo cura tudo, o tempo cura tu-do, minha senhora.

Depois de dois anos, Jéssica, a mais nova, completara a última idade da que morreu. Maria comemorou com um almoço farto para as duas e consentiu que a filha saísse à rua “Às dez, de volta pra casa!”. Afinal é carnaval, e é impossível prender uma moça de dezesseis em casa quando chega o carnaval.

Isso de carnaval nunca agradou Maria porque alegria demais não agrada Maria. Maria é cristã de nascença e não ultrapassa os limites da compaixão, da contenção do pecado, da sexualidade comedida. Maria, sendo cristã, ocupa-se de viver pensando no além, em céu e inferno, juízo final, essas coisas. Maria, quando chega o carnaval, não põe os pés fora de casa, e isso lhe traz a agradável sensação de remissão dos pecados, e sempre que Maria se purifica, logo vem a vontade de cometer um pecadinho, já que em suas contas um bom crédito sempre é debitado pelo sacrifício.

Maria foi até o quarto da morta e abriu a mochila que teve que buscar no IML, há dois anos. Abriu e logo encontrou um caderno, e Maria não é boba, pode ser cristã mas não é boba, ela sabe que, dependendo do caderno, não há nada mais pessoal que qualquer outra coisa. De sua curiosidade pela vida alheia, somente ela, Deus e a filha morta sabiam. E a filha morta está morta, e o morto, dependendo do morto, vira santo, não julga as fraquezas de quem está na Terra. Apoiou o caderno nos braços, equilibrou os óculos no nariz craviado (Maria sabe que beleza e limpeza demais são pecado), e se pôs a ler. Afinal, ler aquele caderno também era pecado, mas Maria não se importou em gastar todo o crédito que Deus lhe dera por não ter visto, nem da janela, qualquer obscenidade carnavalesca. Porque há tempos Maria queria ter lido aquilo, mas como Maria é sempre muito correta, e as pessoas corretas sabem esperar pelo momento certo, sendo que geralmente esse momento certo coincide com o momento permitido por Deus, Maria não sentia culpa alguma. Na primeira página, leu a frase de um poeta que ela não sabe dizer o nome, mas a frase é a seguinte: “Na alegria, jamais consigo cantá-la em meus versos. É somente aqui, na mais profunda tristeza, que eu consigo cantá-la”. Achou bonita aquela tristeza e seguiu adiante, passando rapidamente às intimidades da filha morta, e por ali continuou. Até que dormiu o sono dos justos, ali mesmo, esparramada no chão do quarto, e pensaria, quando acordasse, que aquele sono foi Deus quem lhe mandou. Mas não teve tempo para isso porque, tão logo amanheceu, o telefone tocou. Maria acordou num pulo, atravessou a casa vazia, atendeu o telefone, e aquela voz ela conhecia. ‘Minha senhora...’

Voragem

Se me pensasses, Vida, que matéria
Que cores para minha possível sobrevida?
HILDA HILST




Veio o toque da sirene. Terminada sua primeira aula, ela despediu-se do professor, voz e cabeça baixas, organizou sua mochila que havia displicentemente deitado na cadeira de braço quando ali chegara com dez minutos de atraso, numa das trinta cadeiras de braço desocupadas que reinavam naquele cômodo preenchido pelas notas dó sol fá mi ré dó do piano de cauda, ali - onde passara a última hora tentando tornar falantes os seus dedos e falanges, estendidos sobre as teclas amareladas e pesadas de um piano que já falava antes mesmo dela nascer.

Sempre fora, desde pequena, uma menina pacata com leve síndrome de autismo, sempre pelos cantos lendo gibis e livros de contos fantásticos. Suas sardas, sua pele alva, seu óculos de aro verde com dois graus e meio de miopia davam-lhe o contorno perfeito de uma caricatura angeliana. Suas mãos delicadas mudavam a página das histórias como se tocasse uma nota harmonicamente perfeita para aquele momento. Foi quando percebeu isso que teve o primeiro impulso de um desejo que, até aquele dia, ficara guardado para si – o de se tornar pianista.

Sentia que alguma coisa mudara lá dentro, terminados os primeiros estudos daquele dia. Não foi capaz naquele momento de organizar a mochila da mesma forma que foi feita antes de sair de sua casa, e por isso sobraram-lhe dois livros para o braço esquerdo: Contos de amor rasgados, da Marina Colasanti, e Do Desejo, da Hilda Hilst. Já era moça, completara dezesseis no mês anterior, e sabia bem o que lhe aprazia na leitura. Aliás, desde pequena sabia. Sua aproximação natural com o universo das palavras fez com que desde cedo ouvisse sua própria voz falando baixinho, em pensamento.

Ergueu-se, acomodou a mochila nas costas e mirou a porta de saída. Fez um giro em torno do próprio eixo, posicionou-se frontalmente ao professor e acenou, confirmando sua ausência. Girou a maçaneta automaticamente e saiu. Sentiu o ar frio do corredor, imaginou a marca de dezoito graus no termômetro do ar condicionado, atravessou-o ainda de cabeça baixa, mas não a mesma cabeça que trouxe de casa. Engraçado, ela sabia que alguma coisa nova se remexia, mas não conseguia identificar cor nem textura. Era novo. Era novo! Os livros estavam pressionados pelos dois braços à altura do peito com os seios ainda em formação e foi neste momento que este peito arfou descompassadamente na vontade quase incontrolável de possuir olhos que a fizessem mirar a imagem estática que diminuía às suas costas, em sentido oposto.

Deteve-se à frente do elevador e sinalizou sua urgência com o toque do dedo indicador, o mesmo das notas harmônicas, no botão que se acendeu indicando sua retirada voluntária dentro de alguns minutos. A maçã do seu rosto corou-se quando percebeu seu ritmo interno acelerado, e a sensação de que todos - mesmo não havendo ninguém nas proximidades, podia haver alguma câmera de controle interno (!), - a viam corar-se, fez com que sua compostura se desmanchasse neste tempo de subida ou descida do aparelho que a levaria de uma vez até o terraço do edifício. Seus olhos agitaram-se, sem encontrar foco, traduzindo em movimentos o que se movia em seus escondidos. Sentiu que um sem-número de olhos brotavam dos buracos das maçanetas, das frestas das portas, dos tacos do chão de madeira, dos encanamentos que se abriam em orifícios das mais diferentes desembocaduras, servindo de passagem aos mais diversos espécimes de abjetos, e por isso haveria um solo muito fértil para mutações grandiosas de olhos dos mais diversos focos e cores e formatos e ardências e esses olhos se multiplicavam como câncer e tomavam a natureza das moléculas rígidas das paredes, dos concretos, e surgiam por entre as páginas dos seus livros ainda apoiados no braço esquerdo, e daí lembrou um conto de Mora Fuentes onde é relatado um sonho em que há uma proliferação incontrolável de chineses vários seres chineses minúsculos brotavam dos adentros de um senhor, da sua narina do seu ouvido do seu cu e os chineses vão dominar o mundo, doutor!, os chineses vão dominar o mundoooooo!, ele dizia. Escutou um eco mundooooo. Escutou outros ruídos estacionados em seu tímpano, vindos não sabia de onde, que não conseguiu traduzir. Eram ditos em outra língua ou dialeto, que ela desconhecia.

Toda aquela turbulência não lhe permitiu que permanecesse ali, estática, esperando o elevador. Não se conteve - correu para a escadaria suja e desceu os onze andares com uma pressa só experimentada em sonhos, o mesmo sonho de sempre quando um homem alto de camisa verde corre atrás dela, que foge desesperadamente. E ele vai chegando perto mais perto porque sua perna é maior, quando finalmente ele a agarra com as duas mãos enormes e quentes e olha dentro do seu olho frágil, olho de boi ele tem, e é nesse momento que ela sempre acorda. Ouvia seus próprios passos em cada degrau e cada passo tinha uma sonoridade diferente - o oco do piso o rachado a beirada de alumínio pra não escorregar. Só mais um vão e virá aquela placa de xerox. Veio. Veio, passou e chegou ao térreo. Olhou para a esquerda e, ao olhar para a direita, encontrou a porta de saída.

Empurrou a porta de vidro e veio o bafo quente de todo centro comercial de toda cidade grande. Agora se sentia melhor, como se tivesse passado por um feixe de luz por onde os personagens de contos infantis sempre passam quando vão buscar a realização de algum desejo. Entrou na lanchonete mais próxima e pediu um suco de beterraba, laranja e cenoura. Ela precisava pensar, entender, raciocinaaar (!) e pediu o suco mais demorado por isso. Precisava entender o que estava acontecendo, tinha que encontrar explicação. De onde, a natureza de tudo aquilo? Aquele homem, o descompasso... Sentou-se no banco, depositou seus livros no balcão de vidro que exibia joelhos coxinhas e afins, trouxe a mochila ao colo e mirou o atendente batendo no liquidificador aquele líquido vermelho, beterraberrante. Ah, o líquido é vermelho! É vermelho! Veio a voz súbita novamente no seu ouvido. E o líquido girava. Vermelho!

Tirou rapidamente de sua mochila o valor do suco em moedas, jogou-as no balcão e fugiu.

Quando virou-se o atendente, viu o dinheiro. E só.
Depois viu Contos de amor rasgados e Do Desejo.

Mais nada.
Nem ninguém.

Carta-testamento de uma jovem defunta nua

 


L.H.O.O.Q.
MARCEL DUCHAMP
Também pode ser lida como
"Elle a chaud au cul"

O ser humano pode expandir-se
até dimensões de mundos e épocas sem mover um dedo;
ele pode preencher a eternidade dentro de si mesmo
ainda que, arquejando, morra ao fazê-lo.
Ernest Becker




Ah, meu querido, como te amo ainda que morta, tendo-te para sempre tão presente dentro de mim.

Sigmund disse que o homem se sente Imortal porque desconhece a Morte e o Tempo, e provavelmente ele tenha dito isto porque passou a vida sonhando com Ela, a Morte, em meio às sinusites enxaquecas e prisões de ventre que lhe eram habituais.

Conheci a Morte no momento em que te vi, e na noite que sucedeu nosso primeiro encontro, Ela veio-me em sonho e afiou Suas Garras em meus dentes (e permaneceram em plena harmonia os meus sentidos, ao contrário dos daquele psicanalista). A partir desta noite, Ela passou a freqüentar-me a fim de polir seu crescente Poder - e nisso o Tempo estava sempre presente -, e quanto mais aproximava-me de ti, mais o meu Gozo Silencioso reproduzia-se como câncer dentro de mim. Passado certo Tempo, passei a ver-me com freqüência no topo de um Todo-Branco que derramava luz às minhas recentes obscuridades (sim, porque a juventude é repleta dos escuros).

Esta minha cega composição – a cegueira preta da juventude e a branca da reprodução de ti em mim -, conduziu-me naturalmente a um desfiladeiro que mais tarde obrigou-me ao tão sinalizado encontro irreversível com a Morte e a Vida. E para que este encontro fecundo se realizasse em sua plenitude, o mais certo seria que, no instante da Grande Virada, o teu Todo-Poderoso me entubasse o Prazer Absoluto acumulado e o nosso Gozo Profundo me impulssionasse em direção à luz que tomaria-me o semi-corpo ainda trêmulo e depositário do teu Sêmen Divino. Mas como não estavas por perto, tratei de despir-me rapidamente no furor daquele instante a confundir-me a mortalidade, e com a mesma fome dos deuses, estendi-me nua ao chão em decúbito ventral e abri braços e pernas à espera de que, depois de morta, o teu Bruto Teso me possuísse calmamente o corpo límpido fresco e virgem, aparentemente inabitado de vida.

Neste Grande Ato faminto das Paixões, quando enfim me possuirdes, sentirás o quanto de latência ainda vibra por ti em minha matéria e perceberás que o Amor contraria todos os conceitos e lógicas e ciências estupidamente humanos.

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Tela de Lucien Freud


Que sem sua voz, me esparramo na cama e fabulo desejos. Algo que se faça em vez de. Mas nada, nada, nada...

Joãozinho I

Quem era um menino bacana, sabe quem?, sabe o Joãozinho?, pois é, o Joãozinho! Aquele sim, era uma pessoinha ba-cana, viu. Ai ai... que menino! Que delícia de menino!... Praquele ali não havia tempo ruim não. Porque o joãozinho era assim: “Joãozinho! Nossa, Joãozinhoo... sabe o quê que é? Posso te pedir um favor? ... Então, sabe aquela padaria ali na esquina? Aquela de sempre? Aquela?! ... Ah, Joãozinho...”, e ele ia sem triscar. Joãozinho gostava de andar. Nossa, como gostava! E eu me aproveitava dele, com aquele gosto todo de andar. E como andava bonito, né não? Joãozinho era classudo. Ia andando, e todo mundo olhando. Olha, você pode até não acreditar, mas andar com o Joãozinho na rua era o inferno dos infernos. Por isso eu chegava em casa e assim que chegava pedia pra ele voltar pra comprar isso ou aquilo que eu esquecia. Porque eu sempre tava com pressa quando tava com o Joãozinho na rua, e quando a gente está com pressa sempre esquece alguma coisa. Aquilo não era desse mundo não, viu. O Joãozinho, realmente... não era desse mundo. Ele nem chiava. Nunca vi o Joãozinho chiar por nada desse mundo. Ele dizia, sabe o que que ele dizia? Que ‘a vida tem que ser levada sem esforço’. Ai ai... eu aprendi muito com o Joãozinho. Moço, novo, e parecia que tinha sei lá, uns oitentanos. Deus me livre! Às vezes ele chegava até a ler meus pensamentos. Mas também, quando se está mentindo não tem nada disso de telepatia, né não? Parece que fica tudo estampado na sua testa, uma loucura. Depois disso nunca mais eu menti perto do Joãozinho. Mas não mentia por sacanagem não. Deus me livre fazer sacanagem! Não gosto dessas coisas, aliás nem sei o que é isso. Não sei mesmo.
Tela de Martha Rosler
Quem pode saber por onde anda o espírito a uma hora quente como essa?
Tela de Istvan Sandorf

a Mora Fuentes

eu daqui não sei de tu! tu inacessível. tu - Kadosh Qadós Zé José Fontes Fuentes Luís que Mora(m) em mim. quando abres os olhos, o que vês? o que pensas, no passar das horas nas noites escuras das claras manhãs na cabeceira-tic-tac no cercado antiséptico no todo branco nas gotas gotejantes nos tubos, o que pensas? nos dois amores? no fim? no recomeço? no que não foi? ou no que virá a ser? pensas na imperatriz gansa? nos rebanhos? na matilha no falconeto? na figueira nos três pedidos na visão? fizeste algum pedido? pensas na Luz ou esperas Aquela que te deu amores e vida e companhia e irmandade e descoberta? ad majora natus sum. tudo virá a seu tempo. enquanto isso, te procuro nos zero onze(s).

Semicolcheia na calçada do Municipal Rio Branco semínima pontuada o sinal se fecha na travessia o movimento continua pausa de semínima quatro por quatro dezesseis semicolcheias Caixa Cultural lê o jornal de quinta passada morte de Henry Salvador o sol que atravessa a imensa janela de onde se avista o Largo da Carioca o imenso sol o contraste mínima pontuada breve contemplação enfia a bunda no sofá branco plotagem de livros que vergonha e ainda se chama de livraria (!) plotagem palavra lembra Bya vivendo e aprendendo saca o alicate da mochila tira cutícula da unha vai ao banheiro escova dente passa remédio na herpes que merda de herpes que saco de herpes nunca sara nunca sara pausa de semicolcheia desce a escada de caracol volta no quarteirão barracas bolsa livros velhos novos evangélicos auto-ajuda diderot lolita patrick suskind cadê cadê aqueles outros aqueles gente boa do sax olha pausa indefinida sobe a escada de caracol sofá branco semínima expresso com biscoito de limão e colher de canela sol fá mi ré dó pausa de semicolcheia escova dente joga fora a garrafa de água da mochila menos peso livros pesam a sala se abre as luzes se apagam as luzes se acendem senha próximo filme pausa de mínima volta no quarteirão o maravilhoso sanduíche com blanquet da padaria café com biscoito de laranja escova dente a sala se abre as luzes se apagam fusa fusa semifusa semifusa pausa pausa pelamordedeus ai ai ai as luzes se acendem pausa de compasso senha próximo filme pausa de semínima volta no quarteirão padaria fechada cadê o sax os livros pausa de compasso mais uma mais uma mais uma café com biscoito de maracujá as luzes se apagam.

Tela de Jean-Honoré

Eu, que a cada dia renuncio fatias do meu lado platônico, avivado pela formação em escola tradicional das freiras apostólicas e romanas, onde se prevalece a razão, e todas as explicações imaginárias do indecifrável tomam forma cor e cheiro na visão limitada dentro de uma vida complexa e sem limites – onde mora sua beleza -, entrego-me hoje sem remorsos a grandes prazeres e mergulhos e bato pernas e asas e abro os olhos no fundo e, quando menos espero, me vêm à boca umas pedrinhas reluzentes que eu seco, guardo e detenho comigo pra iluminar minhas noites escuras.


Catarse

Tela de Toulouse-Lautrec
para G. M.

Os sentimentos vastos não têm nome.
Perdas, deslumbramentos,
catástrofes do espírito, pesadelos da carne,
os sentimentos vastos não têm boca,
fundo de soturnez, mudo desvario,
escuros enigmas habitados de vida mas sem sons (...)
(HILDA HILST)


Olho para trás, com um misto de espanto e perplexidade. Sinto que há aflição em meus olhos, senão eles não se mexeriam tanto. Tento contê-los. Como poderia imaginar tanto furor entre aqueles seres que se mostravam límpidos, suaves, castos até, tendo mãos de mães com cheiro de alfazema... como poderia eu, me pergunto!, imaginar aquelas mãos contra mim, se transmudando em foice em punhal e em... – havia um outro que eu não identifiquei no apressado da ação... O que me faria perceber que ali havia a maldade latente, inacessível, disfarçada no mais puro dos amores? Como me precaveria dessa dor lancinante que vem do ser atacado sem renúncia, sem nenhum resquício de defesa: nenhum músculo meu jamais esteve alerta para contra-atacar, entregue que estava por inteiro em todo momento, e até em sonhos.

Talvez por isso tenha me ferido tanto.

Vejo-os através da janela embaçada com meu sangue já um pouco seco. Eles fumam, bebem e riem, como se ninguém além deles houvesse permanecido ali até poucos instantes atrás. Olho-os fixamente e uma náusea começa a nascer e a se reproduzir no meu adentro todo devastado. Meu corpo quer mover-se, e em meio a ardências e gemidos que me vêm de repente como soluço, dou passos sonoros - arrastados mas vitoriosos - em contra-direção.

A náusea aumenta a cada passo, toma forma redonda e azul (fecho os olhos pra ver) e cresce e gira e cresce ainda mais. Páro. Minha cabeça queima, titubeia, deixo-a pender ao peito, os olhos ainda fechados. Há leveza em minhas pernas - onde as ardências? onde os gemidos? – não sei, só sei deste redondo azul que me domina agora, e é tão lindo, é o movimento, e está vindo, e é quente, e está chegando, e vem subindo, e vem, e vemmm, e VEM, e

(...)




(...)




(...)




(...)

Cuspo o restante do azul. (É quente!). Abro lentamente os olhos e vejo aquele excremento deitado no chão, entre minhas pernas. Borbulhante. Fixo os olhos naquela imagem e penso como é estranho olhar para aquilo sabendo que se formou em mim no momento em que os olhei! E que se fez expelir com a força autônoma dos deuses, da natureza, não sei! Uma força... não sei, não sei, não sei!... Diante disso, percebo que nenhum ressentimento me compõe. Purificada, pulo a poça e sigo.

Em nome de todos os amanheceres.

Braço de Elefante




O ser humano pode expandir-se
até dimensões de mundos e épocas sem mover um dedo;
ele pode preencher a eternidade dentro de si mesmo
ainda que, arquejando, morra ao fazê-lo.
ERNEST BECKER



Ela despertou como sempre um esforço mínimo para abrir os olhos vencendo as secreções e olhou à sua direita como sempre olhava porque havia uma janela a mesma janela aberta por onde passava um raio de sol que àquela hora da manhã batia diretamente em seu olho esquerdo e em um pedaço do seu travesseiro. Depois este sol cairia com a tarde por aquele céu passaria a urubuzada - assim ela os chamava em pensamento - e então adormeceria novamente. A mesma cama branca o corpo imóvel o soro na veia do mesmo braço o braço direito de sempre.

Ela despertou como sempre abriu os olhos vencendo as secreções e olhou com esforço em sua volta procurando alguém e não entendeu por que porque nunca vira ninguém naquele quarto branco e frio então se satisfez como sempre em olhar a janela o mesmo pedaço de céu da janela aberta por onde passava o raio de sol que a essa hora batia em seu olho. Depois este sol caiu com a tarde veio a urubuzada anunciando a noite próxima e então ela adormeceu.

Ela despertou e tão logo abriu os olhos o sol batia em seu olho imaginou um quadro pintado e emoldurado: ela na cama ao centro os urubus à sua direita no parapeito da janela e uma pessoa vestida de branco ao seu lado esquerdo supostamente uma enfermeira esta enfermeira olhava para ela segurando um pano vermelho. E passou o dia pensando se esta imagem seria alguma premonição indicando a chegada de alguém ou se teria sido recuperada de sua memória. Ficou pensando essas e outras coisas relacionadas ao quadro. Caiu a tarde e ela não viu a urubuzada passar nem o céu que se fechava mais cedo. Adormeceu.

A chuva veio forte e ela acordou com trovões viu tudo escuro sentiu um medo terrível daquilo tudo pensou que estivesse morta e foi depois que um relâmpago iluminou o quarto que ela percebeu que não que vivia e pensou que a chuva viera forte assim pra arrastá-la dali. E se lembrou do quadro da tarde pensou não em deus esse deus do abandono e do sofrimento mas na enfermeira do quadro que poderia vir agora e fechar a janela. Essa janela aberta tão grande! a chuva imensa essa chuva que queria levá-la dali e um medo terrível de criança ela mesma fecharia a janela mas suas pernas não se moviam há anos que suas pernas não se moviam ela se lembrou e quis chorar chorar mas o medo e os trovões e os relâmpagos e a água inundando seu quarto o vento forte trazia a chuva até a sua cama em seu rosto e ela fechava os olhos e sentia suas secreções se dissolverem e escorrerem até o seu ombro e o colchão agora inundado o vento frio ela viu brilhar o chão quando veio outro clarão e tudo novamente escuro e a urubuzada em algum lugar se deliciando com aquela torrente e rindo da sua desgraça ela ouviu um murmúrio fundo e se sentiu como há muito não se sentia ela mesma sozinha abandonada profundamente triste e humana.

Depois da chuva o céu lavado fez amanhecer vermelho. Tudo estava como deixara a noite anterior. O sol que batia em seu olho esquerdo era o mesmo sol que fazia a água do chão reluzir no teto e ela da cama olhando aquilo pôde projetar todos os incômodos que a vida lhe causara. Vieram as lembranças. O medo da cobra nas corridas pelo capinzal o medo do homem do saco o medo dos cachorros o medo do monstro do rio o medo da mãe o medo de seus seios não crescerem o medo o medo de ser reprovada na escola o medo da curva da estrada o medo do pai o medo de não se casar o medo o medo do falecido marido o medo de ser feliz o medo medo da morte. O medo. E então sentiu uma revolta muito grande por ter se omitido tanto e se sentiu um verme por não ter conseguido terminar de pintar o seu quadro o quadro da sua vida a vida inteira em um único quadro que arreganhava toda a miséria humana aquele quadro inacabado aquele quadro aquela gente. E sentiu raiva de si mesma e de sua incapacidade. Sentiu ódio da mãe falecida e da sua piedade e da vaidade do marido que ela abafara com um travesseiro na noite em que completariam vinte e cinco anos de casados ai o nojo nojo do brasileiro indiferente essa gente fedida que acorda trabalha e dorme acorda trabalha dorme e fode de vez em quando que é pra foder ainda mais com esse país de merda passando a merda de geração pra geração infinitamente enchendo de dinheiro o rabo do poder ahh o podeeer que cospe em cima da ignorância e acha graça mas isso tudo já foi dito e redito. Sentiu-se aliviada por não ter deixado descendentes.

Baixou os olhos junto com a tarde que caía olhou para o seu braço direito e levantou-o num ato de extrema lucidez como que pedindo uma bênção respirou fundo e desenhou no ar o sinal da cruz que ao ser riscada com tamanha violência fez com que ela se libertasse da agulha do soro que rasgou-lhe a veia. Deitou novamente o braço na cama que era toda branca a palma da mão pra cima pendeu a cabeça entregando-se e ficou olhando o fluxo aquele fluxo que se escondeu por todos os seus anos que somente agora resolveu se manifestar e não conseguiu pensar em mais nada. Somente respirava aliviada enquanto seus olhos se fechavam em frações imperceptíveis até que captaram a última imagem um grande vermelho desfocado.

Ao terceiro dia, veio a urubuzada.