Memória - Macedonio Fernández
foto: Patrick Chartrain
"O Fantasismo Essencial do Mundo
{Macedonio Fernández [Museu do Romance da Eterna (Museo de la Novela de la Eterna) Cosac Naif] 2010}.
Sintamos, amada, o vazio do mundo, da apresentação geométrica e física das Coisas, do Universo, e a plenitude, a certeza única da Paixão, o Ser Essencial, sem pluralidade.
Sorrirás como enlaçada ao vazio de uma janela que parecia dar a uma imensa e imóvel Realidade Externa e que bruscamente se reduz a um ponto, se pensares um instante que numa imagem de cena que sonhas ou imaginas pensando desperta pode haver toda a extensão do mundo e no entanto cabe em teu espírito ou mente, ou, se quiseres, na vibração de uma molécula imperceptível de sua "casca cinza", como dizem os fisiologistas. Se tendo abrangido com tua vista um panorama com sol, terra, céu, bosques, rio ou mares, ribeiras, edifícios, depois o pensas ou sonhas, tens exatamente a mesma imagem imensa encerrada em um ponto de tua mente, de tua alma, ou caso se queira numa microscópica célula nervosa de tua casca cinza. E ainda mais, essa mesma casca cinza e o cérebro todo é uma imagem de tua mente, pois não saberias que existe não fosse por imagens que tens de sua forma, cor, divisões, desenhadas ou vistas, e tuas imagens de contato, de temperatura, se estudaste anatomia. Se a casca cinza existisse por si, como poderia pensar nela mesma? Pois isso que estamos discorrendo é precisamente um pensar a casca cinza em si mesma, um imaginar-se da casca cinza a si mesma. Isso somos, com a nitidez de um círculo, nós, um pensar a casca cinza em si mesma. Como o órgão das imagens teria uma imagem de si? Como a casca cinza, onde se diz que reside o pensamento, pensaria em si mesma, enquanto o olho não pode ver diretamente a si mesmo; vemos tudo através dele e não o vemos?
Se dentro de minha mente não há extensão e em qualquer imagem minha posso representar tudo o que vi, é simplesmente porque não há a Extensão, todo o universo não é mais que um ponto, e, menos ainda, não é mais que uma ideia, uma imagem em minha alma.
É essa extensão a que cria a ilusão de pluralidade, que não é aplicável à única realidade do ser: a Sensibilidade.
Paro por aqui; creio que essas palavras possam assomar tua sensibilidade ao abismo dko ser e ao reconhecimento de que tudo é psique, e portanto imortal. Porque já te insinuei, em muitas tentativas de comover tua dolorosa crença na morte, que sinto que o obstáculo que me domina para impedir que meu amor por ti seja o todo-amor que mereces e que é todo o valor da realidade é essa discrepância que nos separa, enquanto tu acreditas que nos espera morte e um terminar de nossas pessoas e de nosso amor e eu não creio que o todo-amor possa florescer em seres que se creiam passageiros."
{Macedonio Fernández [Museu do Romance da Eterna (Museo de la Novela de la Eterna) Cosac Naif] 2010}.
Expansão
Tudo fora do exercício do amor é
bobagem.
Acorda, salta da poltrona. Olha
em volta. Onde?... Barulho de carro... anda pela sala... meio dia e meia.
Garrafas, copos, restos de comida... [O cheiro do resto de comida.] Vinho no
tapete. Em um cômodo... noutro... nada. No banheiro, latas de cerveja. Da
janela, o quarto andar. Onde?! Houve? O quê e quem? (T) E ele?! Pega o tênis
que vê pela frente. Cheira, é o seu. Calçando, silenciosa aceleração. Wham!
Bam! Elevador no térreo! Parado. Depois de esmurrar, desce pela escada pouco
enxergando. {Animais adoram segurar porta de elevador}.
tututututu tu um, dois, treis,
tututututu tututu um, dois, treis,
tututututu tututututu um, dois, treis,
tututututu tututututututu um, dois, treis,
Descendo a escada passa por um
casal trepando, pede licença, pede desculpa, em outro vão esbarra numa velhinha
andando de andador. Escora a velha, pede desculpa, segue. Térreo. Um
senhor empurra com o corpo a pesada porta de entrada do prédio. Sacolas de plástico
nos dedos, punhos, antebraços. A luz de fora entra no hall obscuro, ela passa
pela fresta do senhor, ganha a calçada e pára.
Coração em descompasso, dia nublado,
A nuvem negra olha para ela, sorri.
O vento redemoinha embaixo da saia,
O relâmpago anuncia o trovão, que diz:
“Se apresse!” O grave
retumba no seu ouvido até voltar o som da rua. Obedece. Corre, atravessa entre
carros, dança com buzinas, esbarra [safanão proposital] em executivo
precipitado, olha pra trás achando graça, vê a boca dele se mexendo perplexa.
Salta bueiros, quebra direitas e esquerdas, sobe e desce, calçada, rua, cruza
galerias, gente em vitrine conversa com telefone e ela corre. Um grita – vem
pro tio! -, ela tira o casaco, correndo, e o larga no chão. Já sua. Numa
quebrada, um muro branco. Mão no bolso, caneta de muro, está ali, sempre. "Fui
oiá pra ocê, meus oinho fechô". E um coração circundando. A
chuva vem abaixo de repente. Pingos largos marcam o asfalto que rapidamente se
transforma num pingo só, um grande pingo. A água bate em sua testa misturando
com o suor, a face corada recebe a chuva em estado de embriaguez. Abre a boca e
sorve como o último líquido que se entranha. A roupa cola ao corpo, o tênis
range imerso na enxurrada, os barquinhos de papel descem à toda. Alguns
desgovernados se chocam e é este choque que os orienta no percurso. Foge dali,
corre, “se apresse”! Falta pouco, alguns passos. Ele a poucos metros, a uma
extensão de alguns braços. /T / T / T / Curva, joelho, chão na boca.
Beija. Língua enquanto tira o tênis com agilidade. O paralelepípedo, as
sobrancelhas, o atrás das orelhas, o pescoço, as costas, o sexo, os dedos dos pés,
o paralelepípedo. Uma corrente passa e desgruda da língua todos os beijos,
levando-os pra onde sempre vão as águas. Vira, deita, braços e olhos abertos
lhe trazem muito perto o lugar onde se movem astros. Lava Olhos, Lava Orelhas,
Lava Pés. A torrente continua. Os galhos acompanham o vento, o vento desliza em
seu cabelo. Relâmpago rasga e trovão dá seu ultimato: ela, com força desmedida,
rasga saia, rasga camisa e, nua, permite que a chuva faça o reconhecimento do
seu corpo.
Peito/ Montanha
Bico do peito/ Pico
Umbigo/ Cratera
Cabelo/ Cipó
Sexo/ Lagoa
O 'Enthusiasmós, o Grande' vem
vindo no rabo do vento do não-se-sabeonde, apeia e invade os buracos dela,
todos a um só tempo. Não vemos tubos nem vísceras nem as portas abertas, mas em
instantes seu corpo levita. Uma força exuberante, uma ordenação perfeita. Entre
a surpresa e o entendimento, ouve uma voz muito bonita, lírica e mansa, dentro
da sua cabeça?, ao pé do seu ouvido?, não tem ninguém por perto!, em seu ouvido
interno? [alma tem ouvido?]. O que ela sabe é que ouve. Como uma canção de
ninar sem ser, uma fada de outra língua sem ser, uma voz que não a sua dentro
dela, pintando o espaço com notas irrevogáveis. O sol, com um único raio,
abre passagem entre as nuvens. Incide em sua retina, a assenta de volta à
terra; o corpo toca o chão, o chão segura o corpo. Pressiona as mãos na superfície
pra se certificar. Por um momento pensou que levitava! O pranto se mistura à
tenra chuva. Água/colírio/lágrima. Gargalha, chora, ri, soluça: o momento não é
de ponderação. Vê um ilustre arco-íris que se formou no céu se tornar mais
brilhante. A chuva agora é uma fina cortina de voil. Ela é daquilo tudo, aquilo
tudo é dela. [É de todos.] E, imersa na clarividente harmonia dos corpos, finca
os pés e apruma e as pernas vão sozinhas até o portão do prédio dele. A poucos metros
dali. Como se flutuasse, deixando o nada trás. Sobe pela escada de emergência
para não ser vista por moradores. Está nua, mas seus pés úmidos se contornam no
piso. Esão mais perto a cada degrau. Sua vulva desabrocha graficamente.
Paralela cadência, ele, em seu apartamento, tem o sexo desperto como soldado em
campo de batalha, coisa de desenho animado, que avisa a ele que ela está por
perto. Esta simbiose faria qualquer John A. Fleming morrer solitário pela causa
que, vale dizer, a ciência e a moral (sic) jamais foram capazes de enfrentar. Finalmente
a porta se abre, basta um leve toque e ela o vê de pé, nu, teso, à sua frente e
à sua espera. Ambos esboçam sorrisos, não uma afirmação: resultado da borbulhança, da tremura,
da agitação. O Sangue corre mais veloz, a Serotonina se lança em festa nos braços
dos Neurônios, mas não conseguem roubar a atenção: Testosterona e Estrogênio
estão exuberantes, sendo carregados em massa pelos demais hormônios. Pós-algazarra,
os corpos iônicos se aproximam. Todos querem assistir ao espetáculo, que começa.
nariz/nariz
pé/pé
boca/orelha
sexo/coxas
boca/pescoço
boca/orelha
boca/boca
boca/peito
língua/mamilo
mão/bunda
língua/umbigo
nariz/sexo
dente/coxa
boca/pé
boca/dedos do pé
nariz/perna
nariz/sexo
boca/sexo
sexo/sexo
São um só corpo, um só espírito,
um só perispírito, uma só alma, {espaço reservado in memorian a todas as nomenclaturas de todas as
religiões}, um só cuspe, um só
cheiro, suor, são um só. Abre, penetra, desliza, enterra, beija, rola, ajoelha,
continua, treme, deita, levanta, sussurra, vira, senta - os movimentos são
conduzidos per si e nada excede
nem falta: perfeita coreografia do “Ato Ininterrupto da Paixão”, duração: 2
horas e dezessete minutos. Até chegarem ao ápice, ao clímax, ao deus: o Longo
Gozo, o senhor dos amores, que eleva corpos a dimensões e épocas sem que se
movam, um todo gáudio onde o sagrado regozija, hábitat das esferas primitivas.
Profanos deuses. Depois Dele, os corpos são devolvidos para onde nunca saíram:
a sala do apartamento. A respiração retoma seu pulso, o suor escorre
refrescante, os olhos abrem saciados. O mundo, equilíbrio perfeito: ela no
encaixe dos seus braços. “Vamos tomar banho? (T) Dorme, dorme, pode
dormir.” Entra no chuveiro, ensaboa o sovaco esquerdo, o direito, e o
central. Que a água lava, a toalha leva e na face, a lembrança.
Seca-espelho-barba abotoa chamando suave. Vamos? (T) Oi. (T) Menina, vamos
levantar. Nem um murmúrio. Vai até a cozinha, toma um gole d’água,
bate a porta da geladeira pra fazer barulho. Pisa forte, arrasta: Nada. Nada
dela acordar. Respira fundo e alto - Acorda! Tenho que sair! Ou! Você não
vai trabalhar? Ô menina! Ajoelha, toca o rosto sem sinal. A boca. Beija a
boca. Fria. Mas, como? Agora mesmo/ Sacode. Fala comigo! Tô
aqui! Olha pra mim! Estapeia, esmurra, nem um sinal.
ouvido/peito
boca/boca
ouvido/peito
boca/boca
ouvido/peito
Traz para si. Cheira. O corpo
ainda guarda o seu. Escorrega suas mãos pela plácida-textura-estátua-perfeita:
a sua morada. A que sonhara. Morada só dele e de mais ninguém. Dele dele dele
dele {minha minha minha minha}. Escrafuncha os fundos: quentes e úmidos. Lambe
voraz engole o sumo enterra os dedos. Zíper cona encharcada introduz seu úmido
ereto. Que o sopro traga ela de volta!... Goza. Levanta, anda de um lado a
outro. Quebra quadros, porta retratos, abre e fecha a geladeira, foi as unhas. Continua rígido. Um depositário de porra no meio
da minha sala! Preciso tirar ele dali. *** Pega
pela cintura, agarra, o peso joga-os sentados no sofá, ela em seu colo, brinca
com a filhinha, pocotó, goza mais uma vez. Atira o corpo imóvel com todas as
forças ao tapete. Esmurra a parede. Vai ao banheiro, joga água no rosto, joga água
no corpo, se enfia no chuveiro. Quando sair dali vai ver que é tudo um delírio.
Seu macho é insaciável, precisa ir à rua, precisa que ele abaixe. Se masturba
no chuveiro, pensa nela, urra de prazer, bate a cabeça no azulejo, pega a
toalha, sôfrego, respira, sai do banheiro. Pé ante pé, caminha até a sala.
Quando chegar vai ver o sofá, as poltronas, mais nada! Lá está ela!!!!!!!! As
pernas abertas!!!, a xota queimando, chamando por ele!!! Deeeeeeeeeeeeus!
Deeeeeeeeeeeeeeeeeeeus!!!! Corre até a porta, trancada, não encontra a chave!
Seu pau vai crescendo, crescendo, incha, ele corre em volta dela, em círculos,
desesperado, quer sair dali, não consegue, paredes invisíveis limitam o centro
da sala, ela também no centro, está cercado!!! Seu pau vai tomando a dimensão
da redoma, ele grita Deeeeeeeeus!!!! Deeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeuuuus!! Cai
de joelhos por cima dela e esporra um imenso jorro que a cobre inteira.
Aaaaaaaaahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh Estremece, tomba e, em seu último suspiro,
ouve-se a monossílaba mor.
Saudade
"Mulher passando roupa" (Picasso, 1904)
Ela morria de saudade do marido e só trabalhava usando a roupa que ele esquecera no banheiro. Tropeçando em cheiro de tinta e cachaça, tomou banho e se foi de verdade, desta vez quebrando a maçaneta. Ela limpava a casa dos outros mas nunca lavou a regata sem mais cor, tampouco a bermuda suada. Gostava do seu suor suando em cima do suor dele, prazer que ela nunca revelaria a ninguém. Chegava à noite em casa sem tranca, e antes de orar e dormir, estendia o marido no travesseiro. Rezava por ele e por ele ter ido, amém, mas no fundo morria de saudade dele. Jesus com bebida não combina! Então fica com ele, mulher do diabo! E tudo coube num lençol amarrado, até a água de colônia ele levou, até a escova de dente, ele levou! Um dia ela esqueceu a roupa no banheiro do trabalho. Bem dobrada, no cesto vazio de roupas a passar. Ninguém entra ali, ninguém veria. Dormir não conseguiu, conversou com seu deus, ligou a tv até amanhecer. Chegando lá, cadê? Não perguntou. Dias procurando por toda a casa que ela conhecia muito bem, Ajax em cada canto. Nada. Perdi no ônibus, esqueci no banco da igreja, minha cabeça não anda bem. Traiu Jesus fazendo promessa para São Longuinho. E os dias se passaram e ela passou a dormir com o travesseiro que amparara tantas vezes a muda do marido que se foi, amém. E agradeceu a Jesus - Ele quando fecha uma porta abre uma janela, e sua vida transcorria muito bem. Quando já reinava a fronha em suas noites, ela passando roupa ouvindo rádio cantando baixinho as músicas da igreja, enquanto o patrão entre brioches engasgados tomava seu café: Sabe de quem era uma roupa de pedreiro que estava aí, ali, lá? Ela de pronto: Minha! O senhor nunca me viu com ela? Não esperou a resposta que não veio. O senhor nunca me viu, pensou no silêncio. E não se falou mais nisso, o patrão de então deu um dinheirinho a mais para ela comprar outra roupa. "De mulher", ele deu um risinho. Mas ela morria era de saudade do ex-marido. Amém.
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