Saudade

"Mulher passando roupa" (Picasso, 1904)

Ela morria de saudade do marido e só trabalhava usando a roupa que ele esquecera no banheiro. Tropeçando em cheiro de tinta e cachaça, tomou banho e se foi de verdade, desta vez quebrando a maçaneta. Ela limpava a casa dos outros mas nunca lavou a regata sem mais cor, tampouco a bermuda suada. Gostava do seu suor suando em cima do suor dele, prazer que ela nunca revelaria a ninguém. Chegava à noite em casa sem tranca, e antes de orar e dormir, estendia o marido no travesseiro. Rezava por ele e por ele ter ido, amém, mas no fundo morria de saudade dele. Jesus com bebida não combina! Então fica com ele, mulher do diabo! E tudo coube num lençol amarrado, até a água de colônia ele levou, até a escova de dente, ele levou! Um dia ela esqueceu a roupa no banheiro do trabalho. Bem dobrada, no cesto vazio de roupas a passar. Ninguém entra ali, ninguém veria. Dormir não conseguiu, conversou com seu deus, ligou a tv até amanhecer. Chegando lá, cadê? Não perguntou. Dias procurando por toda a casa que ela conhecia muito bem, Ajax em cada canto. Nada. Perdi no ônibus, esqueci no banco da igreja, minha cabeça não anda bem. Traiu Jesus fazendo promessa para São Longuinho. E os dias se passaram e ela passou a dormir com o travesseiro que amparara tantas vezes a muda do marido que se foi, amém. E agradeceu a Jesus - Ele quando fecha uma porta abre uma janela, e sua vida transcorria muito bem. Quando já reinava a fronha em suas noites, ela passando roupa ouvindo rádio cantando baixinho as músicas da igreja, enquanto o patrão entre brioches engasgados tomava seu café: Sabe de quem era uma roupa de pedreiro que estava aí, ali, lá? Ela de pronto: Minha! O senhor nunca me viu com ela? Não esperou a resposta que não veio. O senhor nunca me viu, pensou no silêncio. E não se falou mais nisso, o patrão de então deu um dinheirinho a mais para ela comprar outra roupa. "De mulher", ele deu um risinho. Mas ela morria era de saudade do ex-marido. Amém.

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