Fragmento

Tela de Balthus
Tome a hóstia sagrada que me sai de forma despudorada do meu terrível corpo tomado pelo pecado e pelo prazer da carne. Purifica-me com tua saliva sagrada me traga de volta à luz que um dia vislumbrei quando criança do alto de uma montanha.

E havia um homem grande do meu lado, grande não, enorme, tinha que deitar pra ver ele inteira. E via de perto porque ele se deitava em cima de mim sem fazer peso e me falava no ouvido a história de cada estrela e eu adorava ouvir essas histórias, e cada uma que eu ouvia e via ele me mostrava que tinha alguma correspondente no meu corpo monocromático. Monocromático, sim, é como você gosta de dizer. Ele dizia assim também. E uma amiga gosta de dizer é que as estrelas não dormem.

Quem não dorme sou eu quando não tenho seu corpo purificado pela morte sobre mim, assim como não posso ter tranquilidade se penso que está a seiscentos quilômetros desse jazigo da salvação.

Aqui jaz uma ninfeta de proveta. E a b...

seria minha obra máxima e se submeteria ao poder absoluto do seu correspondente.

Guardo-a

como quem guarda

o ovo herdado e jamais esquecido, ou

o homem descendo as escadas (original!). Guardo pra quando os seiscentos virarem dois e nessa contagem armo minha rede e conto as estrelas e lembro do homem da montanha mas aquilo passou e o que vale mesmo é que hoje

posso contá-las e reconhecê-las em meu corpo estendido e aberto às tuas carícias e à tua língua divina.

Ouvi dizer que o Herbert adora o pensamento negativo, mas se eu pensar ruim eu vou ficar muito triste e aí é que eu não vejo estrelas mesmo. A cama é uma delícia, macia, e só dá vontade de ficar ali e olhando pro céu. Ela treme quando eu fico assim, deitada de barriga pra cima e olhando pro céu. E aí tem aquele Einstein que você me mostrou na praia e que é só eu me lembrar que aí a cama treme mais ainda. Engraçado né carinha como que o corpo da gente é engraçado. E por falar em engraçado, então, aquele rapaz super super do Paraíso, fiquei lembrando as histórias dos cus que ele queria comer. É que quando subo na rede só me vêm essas histórias na cabeça. Por isso que é engraçado mesmo. Tudo fica uma putaria só, e tem aquela do pai do rapaz que passa e toma um susto danado quando olha na abertura da porta meio aberta meio fechada do quarto do filho. Também, quem mandou ele olhar, saiu correndo pro quarto da cigana que jogou pra lá as cartas que tinha nas mãos, e aí começou a putaria geral.

Agora eu vou ter que ir que sempre que eu quero escrever alguma coisa pra você alguém chama no telefone pra fazer alguma coisa. Nem aqueles seus escritos eu pude ler ainda, aqueles que você deixou pra eu me lembrar de você enquanto você estivesse nos seiscentos e eu no ponto zero, de retorno. Porque você vai retornar né. Senão aqui não vai ser mais o zero,

mas a chegada e a partida

porque sem você eu não fico mais aqui. Levo minhas coisinhas todas embaladas na rede, aquela calcinha que você gosta e a cueca que você deixou pra eu ficar namorando enquanto você estivesse nos seiscentos. Mas você sabe que além da sua cueca eu fico também com o Marcel, o Herbert, o Albert 1, o Albert 2, o Ernest, o Edgar, e que eles ficam aqui comigo, você sabe, mas deles você não tem ciúmes. Só quando aquele menino de fora veio aqui que era pra gente ver um filme daquele cara engraçado que nasceu em Iquique, uma cidadezinha do Chile menor que a minha, onde eu nasci. Dele você também não tem ciúmes, do chileno. Só do menino que veio ver. E talvez do filme, porque aqueles dois que vão pro deserto juntos e ficam andando o filme inteiro sempre pra frente pra encontrar uma cidade que ninguém sabe onde é nem nunca viu mas todo mundo já ouviu falar, que é aquela cidade onde todo mundo é feliz. Mas o que você não sabe é que no filme eles não encontram a cidade, e

deve ser porque ela não exista.

Quando você voltar vou te dizer isso, que a cidade não aparece no filme, deve ser porque eles não sabiam que tipo de gente poderia nessa cidade, e aí você vai ficar um pouco mais tranquilo. Mas o menino fala as coisas todas do Wilhelm (é William, que se diz aqui?), das óperas que ele gostava, dos cinco prefácios que nunca viraram livros, tem gente que tem tudo decorado, acho que ele tem também. Eu decoro são as frasesinhas que eu canto pra você olhando as estrelas um dó sol ré mi ré dó lá dó sol lá lá sol mi ré dó si ré dó, isso quando eu tô calma na rede coçando minhas ressequidas canelas, como disse aquele menino da história da Hilda, enfim, quando tudo tá calmo e sem vento nenhum e que eu canto isso com suavidade. Porque tá fazendo frio aqui e quando ta frio eu não fico nada calma, os meus peitinhos se arrepiam quando venta forte, e quando cai uma chuvona daquelas que caiu ontem então, pior ainda; e você não viu por causa dos seiscentos, mas acontece que quando caiu essa chuvona tudo endureceu tanto e meu corpo foi se encolhendo na rede, e a rede ficou pequenininha pra me cobrir toda encolhida, e eu sentia muito frio, e então saíram umas coisas modais que o vento soprava com a água que caía direto no meu olho, fazendo arder, tava muito ácida aquela chuva, e aquele frio todo o ardido, só pude fazer umas coisas estranhas, modais, que se o Moacir fosse vivo ele deixaria eu chamar de Coisa nº 17 e eu ia pedir pra ele o 17 porque 17 é o meu número de sorte. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá, foi isso que saiu. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá, com a maior variação rítmica que você possa imaginar. Dá-lhe fusa e semicolcheia. Sol sol lá dó mi si lá ré lá dó si ré mi sol ré dó lá mi mi ré dósoldósoldósol si mi ré lá. Mas chega de cantar porque o telefone tocou de novo. Quando é que eu vou ter sossego pra te escrever direitinho e com calma hein? E não é só por isso não, é que depois que todo mundo tem telefone ninguém faz mais nada além de telefonar pras pessoas. Só que eu não quero falar, eu quero estudar, o Ingmar vai ficar chateado de novo comigo porque eu vou sair, e dele você também não tem ciúmes, ele me pediu pra ficar em casa que ele me ajudaria a consertar aquele meu relógio tic tac que eu ganhei de presente por causa dele. Porque o último filme que eu fiz começa com esse tic tac, e ele sabe que foi em homenagem a ele. Então quis muito me ajudar nessa. Depois, quando eu voltar, vou continuar aquela história do frentista que te falei e que não sei mais se é frentista, talvez algum cara de uma conspiração que eu vou saber qual é, e que é só eu ficar quieta sem telefone que eu descubro. Mas aí só mais tarde quando todo mundo estiver dormindo, a única hora que eu consigo pensar no frentista. Ops, no cara da conspiração que virou frentista. Por um dia, dois ou 17. Ou ele é algum Segein que resolveu deixar de lado o campo fechado do audiovisual e de procurar o tal rio que ele diz que passava embaixo do asfalto daquela avenida, aquela maior de todas, e que tem até documentos que comprovam mas que ninguém nunca viu, talvez ele nem os tenha, então pode ser que ele tenha desistido dessa do rio e do audiovisual pra investir na concentração de monóxido de carbono. Razão e Revolução!, ele gritaria às três da tarde embaixo do relógio da Central. Mas também não sei se é uma boa, o Segein tem essa mania de querer ficar passando Cera Luminosa no corpo inteiro, até no ouvido que já tem cera natural ele passa a Luminosa, dizendo que é pra não gripar. Aí não encaixa muito no cara que forja todo um esquema de combustíveis e faz o trânsito da cidade inteira parar. Tem também aquela história das estatísticas que surgiu no Pierrot quando eu conversava com minha amiga das montanhas. Essa eu não sei nem como começar e nem sei se vai ser de estatística, a gente andou conversando depois. O que eu sei é que acordei e enquanto passava o café, o Cláudio que você conhece, ele dormiu aqui em casa porque disse que queria pensar numas coisas, umas idéias, e que era mais fácil pensar aqui em casa que na casa dele, não sei por quê, não conheço a casa dele. Acontece que enquanto eu passava o café o Cláudio não falava nada, ficou calado o tempo todo sentado à minha frente me olhando passar o café, olhando assim, com o olho parado, então não olhando na verdade, mas aí tocou a campainha, e quem era?, o Jorge. Chegou dizendo um monte sobre o Al Gore e que o mosquito da malária é o maior defensor da floresta amazônica e coisa e tal. Só sei que nessa hora o Cláudio levantou o olho e deu um sorriso pra mim como se dissesse é agora e daí por diante eu não entendi mais nada, eles foram pro escritório e começaram a falar muito baixo, como se planejando alguma coisa. Mas não eles gostam mesmo é de discutir, botar as idéias e a imaginação pra funcionar. O Cláudio queria mesmo era um motivo pra dizer alguma coisa, ele queria falar mas não sabia escolher o quê, porque a cabeça dele é sempre a mil por hora, e então quando tá a mil e duzentos ele paralisa que nem paralisou nessa hora que eu te falei. O Jorge é uma pessoa engraçada, eu adoro o Jorge. Adoro ouvir as coisas que ele fala, me parece uma pessoa muito sábia, e as pessoas sábias dão vontade de você ficar perto o tempo inteiro, e é pena que eu encontro pouco com ele. Depois da conversa com o Cláudio ele foi em embora, e o Cláudio também um pouco depois. Ainda tomou mais um café com bastante açúcar e canela, pegou a pasta dele, tocou a maçaneta, virou-se pra trás, pra mim, e disse “de repente me senti tão sozinho”, e foi. Sozinho. O Jorge já é um pouco diferente, quando ele saiu, disse “no fundo de todas as almas massacradas, o elo de união”. E foi também, mas não tinha nada nas mãos.

O que eu não te contei é que ontem eu abri a mala que levei pra casa do Zé no ano passado, a última vez que eu fui lá, e me deu uma secura no peito antes de abrir essa mala porque você sabe que ele morreu e eu não pude me despedir dele. Nem dizer o que eu sempre dizia, mas queria ter dito antes dele morrer, que é “Zé, eu te amo. Vou, vou sim, eu vou pra aí, faço muita comida gostosa, a gente vai ao supermercado e dança com o carrinho. A gente dança, canta, enquanto procura aquela mostarda que você gosta. E aí a gente chega em casa abre o vinho, eu cozinho enquanto você me conta histórias. Quero muito, ta apertado mas dá, eu tô indo pra aí. Verdade! Juro!”. Queria ter dito isso, fiquei de ligar, as coisas passavam, eu louca pra ter notícia, alguma coisa me dizia. Mas não liguei, não pensei que ele fosse agora, sei lá o que pensei ou não pensei. E nessa mala tava todo o figurino que eu usei pra fazer ele, porque eu fiz ele no teatro, eu me vestia dele e falava como ele e falava as coisas que ele falava, tudo como ele tinha escrito e me dado um dia num bar de Belo Horizonte, o Lucas, e que ele escreveu uma dedicatória “para minha amiga companheira de sonhos...”. Aí eu montei em seguida no teatro. Mas nesse dia do bar, ele tinha acabado de ver a sobrinha dele que eu mostrei pra seiscentas pessoas (me lembrei de você com os seus seiscentos que vão virar zero daqui a alguns dias) e mandei logo uma frase bem cabulosa pra ele, que a sobrinha falava (a sobrinha não falava, entenda, ela só falava através de mim), na frente de todo mundo, a frase perguntava se é mais gostoso ser lambido que lamber, e esperei ele responder. E ele respondeu que era mais gostoso ser lambido que lamber. Depois disso é que nós fomos pro bar e ficamos lambendo só gelo mesmo a noite inteira e falando de arte e de umas promessas com ele e a mulher dele, que é linda. Quando eu dormia na casa dele era assim, a gente acordava, ia pra mesa tomar o café e contar os sonhos. Depois cada um pegava um livro e lia o que tinha achado de mais interessante que o outro soubesse daquele livro. Depois cada um ia pra uma rede e ficava lendo pra terminar de acordar, com café e canela na caneca esquentando a barriga, e depois ia cada um pra um quarto pra escrever e só saía de noite pra jantar. Eu que ia sempre cozinhar porque gosto, e todos gostavam da minha comida (ou de não ter que fazer comida). Silenciosa janta, que cada um tava com suas histórias na cabeça completando o silêncio. E sabe que eu tinha medo daqueles cachorros todos, mais de oitenta na casa, e a primeira vez que eu fui lá ele me protegeu dos cachorros e nenhum deles chegou perto, porque podia ter matilha e tudo, mas era ele que mandava na matilha, tava acima do chefe. Então ninguém mexeu comigo. Até o Raí, que era o aspirante ao chefe e o mais agressivo e que mordia todo mundo que chegava de fora, gostou de mim. Aí que eu comecei a gostar de cachorro, mas de matilha. Cachorro que vive solto, não de apartamento de madame. Depois te conto a história da madame que bateu aqui em casa ontem à tarde, pouco depois da Rita sair, e ela bateu achando que eu lia mão ou jogava carta ou coisa assim, depois te conto o que aconteceu quando soube que eu faço o que eu faço.

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