Quando anoitece


Estou de pé, à sua frente, você deitado assim como sempre. Tiro calmamente o sutiã, olho seus olhos, você deitado e um dos braços segurando a cabeça. Inclina-se pra frente, assim me vê melhor e me vendo melhor se sente capaz de ordenar suas diretrizes deitando o pensamento no indizível. É verdade, indizível. Então deixo cair descuidada e teatralmente uma das alças do sutiã. Depois a outra. Essa foi previsível mas poderia não ser. Deixo meus ombros livres como os das musas renascentistas. O meu ombro é branco como o delas, mas com uma singela diferença perceptível somente aqui no seu quarto.

Estou de pé, os pés pressionam os dois tacos bambos do chão, penso em tatear algo mais seguro, mas não, daqui te vejo sem maior esforço. Devo estar leve e serena. Ou pelo menos me parecer. Você deitado, os pés se cruzam balançando os dedos, coçam-se uns aos outros. Reflexo. (...) Confortável, porque é assim que tem que ser; e eu me equilibro sabendo que virá um rangido com meu próximo movimento. Preocupo-me em imprimir um gesto exato, preciso, ritmado. Seus olhos atentos um pouco esticados para caber o sorriso de trás. Claro, fiz tudo ao seu modo. Terminado o jantar lavei a louça beijei suas mãos em concha conduzindo-as até aqui com uma mão, a outra apagando as luzes. Durante o percurso me perguntou se eu não me importo com essa calmaria de tudo, e disse carinhosamente que a comida estava deliciosa. No fim do caminho você sempre diz
o Desejo não é fato consumado.
E eu, concordando:
o Desejo é latência pura, circular,
a mais primitiva das formas de vida.
Essas nossas últimas palavras, até que novamente amanheça.

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