Voragem

Se me pensasses, Vida, que matéria
Que cores para minha possível sobrevida?
HILDA HILST




Veio o toque da sirene. Terminada sua primeira aula, ela despediu-se do professor, voz e cabeça baixas, organizou sua mochila que havia displicentemente deitado na cadeira de braço quando ali chegara com dez minutos de atraso, numa das trinta cadeiras de braço desocupadas que reinavam naquele cômodo preenchido pelas notas dó sol fá mi ré dó do piano de cauda, ali - onde passara a última hora tentando tornar falantes os seus dedos e falanges, estendidos sobre as teclas amareladas e pesadas de um piano que já falava antes mesmo dela nascer.

Sempre fora, desde pequena, uma menina pacata com leve síndrome de autismo, sempre pelos cantos lendo gibis e livros de contos fantásticos. Suas sardas, sua pele alva, seu óculos de aro verde com dois graus e meio de miopia davam-lhe o contorno perfeito de uma caricatura angeliana. Suas mãos delicadas mudavam a página das histórias como se tocasse uma nota harmonicamente perfeita para aquele momento. Foi quando percebeu isso que teve o primeiro impulso de um desejo que, até aquele dia, ficara guardado para si – o de se tornar pianista.

Sentia que alguma coisa mudara lá dentro, terminados os primeiros estudos daquele dia. Não foi capaz naquele momento de organizar a mochila da mesma forma que foi feita antes de sair de sua casa, e por isso sobraram-lhe dois livros para o braço esquerdo: Contos de amor rasgados, da Marina Colasanti, e Do Desejo, da Hilda Hilst. Já era moça, completara dezesseis no mês anterior, e sabia bem o que lhe aprazia na leitura. Aliás, desde pequena sabia. Sua aproximação natural com o universo das palavras fez com que desde cedo ouvisse sua própria voz falando baixinho, em pensamento.

Ergueu-se, acomodou a mochila nas costas e mirou a porta de saída. Fez um giro em torno do próprio eixo, posicionou-se frontalmente ao professor e acenou, confirmando sua ausência. Girou a maçaneta automaticamente e saiu. Sentiu o ar frio do corredor, imaginou a marca de dezoito graus no termômetro do ar condicionado, atravessou-o ainda de cabeça baixa, mas não a mesma cabeça que trouxe de casa. Engraçado, ela sabia que alguma coisa nova se remexia, mas não conseguia identificar cor nem textura. Era novo. Era novo! Os livros estavam pressionados pelos dois braços à altura do peito com os seios ainda em formação e foi neste momento que este peito arfou descompassadamente na vontade quase incontrolável de possuir olhos que a fizessem mirar a imagem estática que diminuía às suas costas, em sentido oposto.

Deteve-se à frente do elevador e sinalizou sua urgência com o toque do dedo indicador, o mesmo das notas harmônicas, no botão que se acendeu indicando sua retirada voluntária dentro de alguns minutos. A maçã do seu rosto corou-se quando percebeu seu ritmo interno acelerado, e a sensação de que todos - mesmo não havendo ninguém nas proximidades, podia haver alguma câmera de controle interno (!), - a viam corar-se, fez com que sua compostura se desmanchasse neste tempo de subida ou descida do aparelho que a levaria de uma vez até o terraço do edifício. Seus olhos agitaram-se, sem encontrar foco, traduzindo em movimentos o que se movia em seus escondidos. Sentiu que um sem-número de olhos brotavam dos buracos das maçanetas, das frestas das portas, dos tacos do chão de madeira, dos encanamentos que se abriam em orifícios das mais diferentes desembocaduras, servindo de passagem aos mais diversos espécimes de abjetos, e por isso haveria um solo muito fértil para mutações grandiosas de olhos dos mais diversos focos e cores e formatos e ardências e esses olhos se multiplicavam como câncer e tomavam a natureza das moléculas rígidas das paredes, dos concretos, e surgiam por entre as páginas dos seus livros ainda apoiados no braço esquerdo, e daí lembrou um conto de Mora Fuentes onde é relatado um sonho em que há uma proliferação incontrolável de chineses vários seres chineses minúsculos brotavam dos adentros de um senhor, da sua narina do seu ouvido do seu cu e os chineses vão dominar o mundo, doutor!, os chineses vão dominar o mundoooooo!, ele dizia. Escutou um eco mundooooo. Escutou outros ruídos estacionados em seu tímpano, vindos não sabia de onde, que não conseguiu traduzir. Eram ditos em outra língua ou dialeto, que ela desconhecia.

Toda aquela turbulência não lhe permitiu que permanecesse ali, estática, esperando o elevador. Não se conteve - correu para a escadaria suja e desceu os onze andares com uma pressa só experimentada em sonhos, o mesmo sonho de sempre quando um homem alto de camisa verde corre atrás dela, que foge desesperadamente. E ele vai chegando perto mais perto porque sua perna é maior, quando finalmente ele a agarra com as duas mãos enormes e quentes e olha dentro do seu olho frágil, olho de boi ele tem, e é nesse momento que ela sempre acorda. Ouvia seus próprios passos em cada degrau e cada passo tinha uma sonoridade diferente - o oco do piso o rachado a beirada de alumínio pra não escorregar. Só mais um vão e virá aquela placa de xerox. Veio. Veio, passou e chegou ao térreo. Olhou para a esquerda e, ao olhar para a direita, encontrou a porta de saída.

Empurrou a porta de vidro e veio o bafo quente de todo centro comercial de toda cidade grande. Agora se sentia melhor, como se tivesse passado por um feixe de luz por onde os personagens de contos infantis sempre passam quando vão buscar a realização de algum desejo. Entrou na lanchonete mais próxima e pediu um suco de beterraba, laranja e cenoura. Ela precisava pensar, entender, raciocinaaar (!) e pediu o suco mais demorado por isso. Precisava entender o que estava acontecendo, tinha que encontrar explicação. De onde, a natureza de tudo aquilo? Aquele homem, o descompasso... Sentou-se no banco, depositou seus livros no balcão de vidro que exibia joelhos coxinhas e afins, trouxe a mochila ao colo e mirou o atendente batendo no liquidificador aquele líquido vermelho, beterraberrante. Ah, o líquido é vermelho! É vermelho! Veio a voz súbita novamente no seu ouvido. E o líquido girava. Vermelho!

Tirou rapidamente de sua mochila o valor do suco em moedas, jogou-as no balcão e fugiu.

Quando virou-se o atendente, viu o dinheiro. E só.
Depois viu Contos de amor rasgados e Do Desejo.

Mais nada.
Nem ninguém.

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