XVI

Tela de Piotr Naliwajko


Maria perdeu sua filha de dezesseis anos num desses acontecimentos urbanos que ninguém vê, e no final das contas descobre-se que ninguém tem culpa de nada, exceto quem morreu. Porque o morto todo mundo vê e ele tem culpa sim, aquilo esparramado atrapalhando o trânsito!, olha só, minha senhora, essa pilha de denúncias de gente que perdeu vôo, olha só, gente importante! e que trata de assuntos importantes! sobre o nosso país, não podem se atrasar porque os negócios não atrasam, minha senhora, os negócios não-a-tra-sam!, e nós devemos andar no compasso dos negócios. A senhora entende, não é? Leve-a pra tomar um pouco d’água, a senhora deve se acalmar, eu também sou pai de família e posso entender o seu sofrimento. Mas o que aconteceu está acontecido, não há nenhuma evidência concreta que prove o autor do acontecido, agora o meu dever é não deixar que aconteça outra vez. E pra que isso não aconteça outra vez, é preciso trabalhar. Eu preciso trabalhar, minha senhora. Com licença. Foi um prazer. Ah!, o tempo cura tudo, o tempo cura tu-do, minha senhora.

Depois de dois anos, Jéssica, a mais nova, completara a última idade da que morreu. Maria comemorou com um almoço farto para as duas e consentiu que a filha saísse à rua “Às dez, de volta pra casa!”. Afinal é carnaval, e é impossível prender uma moça de dezesseis em casa quando chega o carnaval.

Isso de carnaval nunca agradou Maria porque alegria demais não agrada Maria. Maria é cristã de nascença e não ultrapassa os limites da compaixão, da contenção do pecado, da sexualidade comedida. Maria, sendo cristã, ocupa-se de viver pensando no além, em céu e inferno, juízo final, essas coisas. Maria, quando chega o carnaval, não põe os pés fora de casa, e isso lhe traz a agradável sensação de remissão dos pecados, e sempre que Maria se purifica, logo vem a vontade de cometer um pecadinho, já que em suas contas um bom crédito sempre é debitado pelo sacrifício.

Maria foi até o quarto da morta e abriu a mochila que teve que buscar no IML, há dois anos. Abriu e logo encontrou um caderno, e Maria não é boba, pode ser cristã mas não é boba, ela sabe que, dependendo do caderno, não há nada mais pessoal que qualquer outra coisa. De sua curiosidade pela vida alheia, somente ela, Deus e a filha morta sabiam. E a filha morta está morta, e o morto, dependendo do morto, vira santo, não julga as fraquezas de quem está na Terra. Apoiou o caderno nos braços, equilibrou os óculos no nariz craviado (Maria sabe que beleza e limpeza demais são pecado), e se pôs a ler. Afinal, ler aquele caderno também era pecado, mas Maria não se importou em gastar todo o crédito que Deus lhe dera por não ter visto, nem da janela, qualquer obscenidade carnavalesca. Porque há tempos Maria queria ter lido aquilo, mas como Maria é sempre muito correta, e as pessoas corretas sabem esperar pelo momento certo, sendo que geralmente esse momento certo coincide com o momento permitido por Deus, Maria não sentia culpa alguma. Na primeira página, leu a frase de um poeta que ela não sabe dizer o nome, mas a frase é a seguinte: “Na alegria, jamais consigo cantá-la em meus versos. É somente aqui, na mais profunda tristeza, que eu consigo cantá-la”. Achou bonita aquela tristeza e seguiu adiante, passando rapidamente às intimidades da filha morta, e por ali continuou. Até que dormiu o sono dos justos, ali mesmo, esparramada no chão do quarto, e pensaria, quando acordasse, que aquele sono foi Deus quem lhe mandou. Mas não teve tempo para isso porque, tão logo amanheceu, o telefone tocou. Maria acordou num pulo, atravessou a casa vazia, atendeu o telefone, e aquela voz ela conhecia. ‘Minha senhora...’

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